Tuesday, October 20, 2020

Momentos Marcantes na Vida de Um Leitor de Banda Desenhada - 8 - O Advento do Crítico e Fred

Depois de uma década em que pouco liguei à banda desenhada (anos de faculdade, de serviço militar, de retoma da vida civíl), o ano de 1991 foi importante nesta estória porque foi quando passei de simples e anónimo leitor a crítico. Poderia ressalvar que escrevo estes posts desde o ponto de vista do primeiro e não desde o ponto de vista do segundo, e até poderia ser essa a intenção, mas, por mais que tente, não consigo separar completamente as putativas e esquizofrénicas entidades. Ao olhar para trás vejo quão imatura e fundamentalmente acrítica foi a minha posição de leitor omnívoro nos quase trinta anos que, em 1991, tinha deixado para trás. É também verdade, no entanto, que um olhar crítico mais exigente não se formou, numa epifania, logo nesse ano. Segundo me lembro houve dois momentos importantes que fizeram a diferença: no primeiro, em data que não consigo precisar, questionei-me se fazia sentido gostar ao mesmo tempo, e por igual, de Rembrandt e Batman, de Tchekov e Astérix (?). Quanto ao segundo momento, tem data e local: O Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA) no dia 14 de Dezembro de 1994. Foi aí, nos Encontros de Psicologia e Arte - "O Sentir e o Sentido", em que participei com Rui Zink e Nuno Artur Silva, que queimei as pontes com aqueles a quem chamei, muito mais tarde, aquando do caso Casa Pia (eu e a Teresa Câmara Pestana, qual de nós primeiro, para mim, não importa e suponho que o neologismo se explica a sí próprio), os bedófilos. Nessa tarde noite saí do instituto e fui jantar com o Miguel Falcato Alves. Já não sei qual dos dois o disse, mas se um o disse, o outro concordou: tinha acabado de me auto-excluir da comunidade que perfilha e integra a subcultura. Assim foi. Assim ainda é.

Pode ser que venham aí mais ocasiões para falar do meu, então, novo papel. Por agora vou apenas citar um dos meus críticos de banda desenhada favoritos, Bruno Lecigne: 

Havia, antigamente, uma verdadeira fronteira, uma verdadeira linha de demarcação, entre o que era "cultural" e o que não era. Essa linha já não existe ou, em todo o caso, já não existe muito. [...] De uma maneira geral, tudo o que era arte menor ou subcultura, como se dizia [e ainda digo, exclamo en passant], integra-se hoje muito bem numa produção e consumo globalizados de "bens culturais" ou de "conteúdos culturais". [...] Há uma abertura que é um pouco a abertura por que nos batemos, mas a contrapartida, que não estava prevista, é que tudo se iguala. [...] Há uma moleza generalizada [em que] tudo flutua de barriga para o ar, sem determinação, sem definição. Penso que os grandes antagonismos já não existem. A banda desenhada [...] ganhou o seu combate cultural num momento em que o sentido deste conceito se encontra em perda.

Lecigne proferiu as afirmações acima numa entrevista conduzida por Christian Rosset e Jean-Christophe Menu e publicada na revista l'éprouvette 3, em 2006. Catorze anos depois nada mudou. Que alguém se intitule crítico no mundo de hoje é o mesmo que dizer-se aguadeiro ou limpa-chaminés. Num ponto discordo de Bruno Lecigne, no entanto: não foi a banda desenhada que ganhou a batalha cultural, foi a cultura que perdeu a batalha contra o dumbing down ou, no contexto português, contra o pimba. Consequência disso: é o pimba da banda desenhada que é incensado, com tudo o resto, esquecendo-se, com raras excepções, evidentemente, o que deveria ser reconhecido. 


Fred, O Diário de Jules Renard Lido por Fred, Outubro de 1989

Pela primeira vez nesta série de posts não pude reproduzir, à guiza de cabeçalho, a capa do livro que tanta impressão me causou quando o li pela primeira vez na versão portuguesa da livraria Bertrand (a capa acima foi retirada da Internet). Passe o preciosismo porque pouca diferença há entre a versão portuguesa (acima) e a original (em baixo), idênticas em quase tudo. Pouca ou... muita, conforme a importância que cada um atribua à única alteração, ou omissão, mais propriamente, que o designer português decidiu introduzir. É que, na legenda onde se lê "Roman BD - Flammarion" a capa portuguesa tem apenas "Bertrand Editora", como se vê e lê, embora de forma algo sumida. É interessante que se tenha deixado cair a expressão "Romance BD". Estou certo de que hoje, por influência norte-americana (e conto a gesta aqui), o designer francês escreveria "Roman Graphique" e o português não se coibiria de traduzir. Misturar romance com "BD" há trinta anos, em Portugal, era, ao que parece, um sacrilégio impensável e um crime de lesa cultura. Hoje, quando os crivos desapareceram (cf. supra), já ninguém se escandaliza com nada e tudo, ou quase, é possível... Voltando ao princípio: não pude reproduzir a malfadada capa porque, salvo se deparar com  esta, mais o miolo que a dita envolve, em demanda de algo diferente, como soe acontecer, perdi-lhe completamente o rasto...


Fred, Le Journal de Jules Renard Lu par Fred, Março de 1988

Testemunho de que a obra em causa me impressionou é a breve resenha que publiquei no fanzine Nemo, pouco depois da leitura e que reproduzo em baixo na íntegra:


Nemo #6 da 2ª Série, Fevereiro de 1991
Quanto lhe referi que o livro dele tinha afinidades com o filme de Pasolini Fred ficou surpreendido uma vez que tal coisa não lhe tinha passado pela cabeça (e isso responde à hipótese colocada no texto), mas vi, pela sua reacção, que não enjeitava o parentesco.

O texto mais extenso que escrevi sobre Fred pode ler-se aqui. Foi escrito por ocasião de uma reedição de outra obra-prima de Fred, Le petit cirque, com valores de produção, se não de luxo, pelo menos dignos. O meu último comentário, por baixo do post, em scroll down, lamenta a morte do autor (o mesmo fiz aqui), mas não posso esquecer também que Kim Thompson me respondeu a 14 de Janeiro e morreu a 19 de Junho (de 2013), ou seja, cinco meses depois! Neste mesmo blogue escrevi sobre a revista Hara-Kiri e Le Journal (com a habitual coda).

Sobre a série Philémon, que não aprecio por aí além, sem a desdenhar no que tem de invenção formal, nunca escrevi.

Fred é um daqueles autores que, sendo cartoonista, nunca se limitou ao cartoon de uma imagem só. Se bem que no espírito do gag absurdista, dentro da linha editorial da revista Hara Kiri, para além de cartoons humorísticos a uma página Fred também produziu, para a revista referida, cartoons desdobrados em várias vinhetas, ou seja, banda desenhada. Foi assim que nasceram as profissões inventadas e Le petit cirque, ambas as séries com uma carga poética muito própria do autor. É daí também que vem Le journal, embora com espírito um pouco diferente uma vez que Fred ampliou a poesia, mérito de Jules Renard, e reduziu a fantasia a, praticamente, um corvo palrador. Corvo esse, aliás, que bem pode ser apenas um produto da imaginação do peripatético protagonista.

Uma vez que não tenho grande coisa a acrescentar ao que escrevi há vinte e nove anos, nem é esse o objectivo, termino com uma prancha alusiva a esta série de posts autobiográficos:


PS Realmnente, não há nada de novo debaixo do céu. Ao reler algumas passagens do Journal de Jules Renard apercebi-me de que já lá está, uns anos antes, a forma poética baptizada como gregueria por Ramón Gómez de la Serna (se escrevesse hoje o texto publicado no Nemo substituía haiku por gregueria). Deixo um exemplo (29 de Março de 1894):
Palmier, arbre absalonien, aux cheveux de poète idéaliste.
E outro (8 de Maio de 1901):
L'accent circonflexe est l'hirondelle de l'écriture.

E outro ainda (21 de Julho de 1903):

Coccinelle: une petite tortue qui toute à coup s'envole. 

8 comments:

MMMNNNRRRG said...

a dada altura só havia três livros de BD publicados em Portugal a mostrar a quem dizia que não conhecia BD sem um gajo passar vergonhas: este do Fred, o Maus do Spiegelman e Silêncio do Didier Comès...
ei! estava mesmo contigo à frente quando inventaste o "bedófilo" - ou o Falcato - mas certo certo é que comecei a usar esse termo também! e acho que foi numa tertúlia do Lino, no Gina mas lá mais para finais dos 90 ou inícios dos 00, não?
anyway, 94 ou 2000, numa conferência ou num restaurante manhoso foi a melhor cena que inventaste, hahaha!!
M

Isabelinho said...

Pois foi, agora que me lembras... Como disse, foi por alturas do caso Casa Pia o qual, diz-nos a Wikipedia, rebentou em 23 de Setembro de 2002.

MMMNNNRRRG said...

2002 - nascimento da bedófilia!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

Isabelinho said...

Oh, a bedófilia é mais antiga do que isso. O conceito é que é mais recente. A bedófilia está intimanente ligada à noção de nostalgia e ao complexo de Peter Pan. A meu ver há duas gerações de bedófilos: os nostálgicos de O Mosquito, O Papagaio, O Cavaleiro Andante, Mundo de Aventuras, primeira série, etc... e essa, porque nasceu nos anos de 1930 a 1950 está a desaparecer; a segunda: os nostálgicos da revista Tintin (sobretudo!), Mundo de Aventuras segunda série, O Falcão, etc... que é a minha e, espero bem, ainda leve algum tempo a ahem... desaparecer! Gerações mais recentes terão nostalgia de Prince of Persia, Duke Nukem, Fifa 94, etc... Ainda tenho os MIDIs na cabeça!
Lembrei-me também que a bedófilia não se limita à nostalgia. Informa o gosto contemporâneo, ou seja, há, por parte dos bedófilos, uma procura de réplicas do que leram em crianças. É também isso que perpetua os modelos comerciais que conhecemos.

MMMNNNRRRG said...

nunca associei a "bedófilia" a nostalgia - cada um sabe de si em relação a este tema - mas de "alguém adulto que (ainda) gosta de BD para crianças" (por isso, sim peterpan bullshit arrested development), não interessa se é um gajo com 70 anos ou com 20, o que interessa é que não evoluem em nada na sua leitura de BD desde crianças / jovens.
naquele jantar acho que foi isso que alguém disse (tu ou o Falcato) e que deu logo no "bedófilo" (e gargalhadas descomunais).
boa noite!
M

Isabelinho said...

Marcos:
Se reparares é o que digo na segunda parte do meu comentário: "a bedófilia não se limita à nostalgia". Mas a razão porque liguei a criação do neologismo ao caso Casa Pia é porque tem mesmo relação. A conversa nesse jantar tinha a ver com o caso e, daí, a ligeira transformação ortográfica que dá uma grande transformação semântica.

gustavo said...

olá, tudo bem? sou um jovem brasileiro desesperado para ler qualquer coisa do andrea bruno, e nessa minha jornada a procura de materiais em inglês ou completos mesmo que em italiano acabei dando de cara com sua análise de sabato tregua. você poderia me disponibilizar o arquivo do quadrinho? ficaria muito agradecido, me identifiquei imensamente com a arte dele.

Isabelinho said...

Olá Gustavo! Andrea Bruno é publicado, em italiano, claro, na editora Canicola. Em inglês, acontece que quando fui editor para a Europa da revista Rosetta #2 escolhi uma história curta dele. Cumprimentos desde Portugal!