Guido Buzzelli, Zil Zelub, Fevereiro de 1973 (Charlie Mensuel # 38 - # 44, Março - Setembro de 1972)
Disse no post anterior que a minha admiração pela obra que iria ser alvo deste se deu a dois tempos, mas não foi exactamente isso que aconteceu. Não sei se adquiri Zil Zelub de Guido Buzzelli logo em 1973 ou um pouco depois, provavelmente, um par de anos depois, mas não me lembro de o livro me ter causado nenhuma impressão particular nessa altura. Ao deixar a casa paterna, para ir viver em casa própria, deixei alguns livros de banda desenhada para trás, este inclusive. Numa visita muito posterior (décadas?, não posso precisar...) peguei naquele objecto algo estafado, conforme se comprova acima (tratava muito mal os livros, essa é que é a verdade), que vinha até mim desde um passado longínquo e não podia acreditar no que lia: tive imediatamente a sensação de que estava perante um clássico, uma obra cimeira da arte da banda desenhada.
(Na segunda aparição que a Editorial Presença faz a encabeçar esta série de posts, abro um parentesis para expressar a minha gratidão por esta ter sido um pilar muito importante na minha formação adolescente. Foi a Editorial Presença, fundada no mesmo ano em que nasci, que me deu a conhecer a história da filosofia e das ideias políticas, a história das literaturas de vanguarda,O Signo de Umberto Eco, o teatro, de Shakespeare a Jean Genet, Jean-Paul Sartre e Samuel Beckett e a poesia de Ruy Belo, Paul Éluard e Maiakovski. Ver no que se transformou, no mês da morte do seu fundador, não sei o que mais me provoca: se asco, se desgosto, se tristeza... E nada disto tem absolutamente nada a ver com quem, agora, gere os destinos da empresa. Que entenda quem quiser...)
A partir do embate inicial a minha ligação a Guido Buzzelli nunca se interrompeu, mas, por vários motivos, não foi o frutífera que poderia e deveria ter sido. É verdade que o nome do autor italiano foi aparecendo
aqui e ali neste blogue, mas tirando as duas intervenções que se documentam abaixo (uma delas repetida, por ser tradução do inglês para o italiano), e são de monta na minha consideração, mais nada há a registar, infelizmente... a não ser, talvez, o lugar proeminente na exposição de arte original da minha colecção em Beja, de que falei no
post anterior.
The Comics Journal #244, Junho de 2002
I Labirinti, Outubro de 2002 (tradução do inglês por Alessandro Bottero)
Imagem do convite para a inauguração da exposição no Palácio Galveias que comissariei com Grazia Buzzelli sendo, na altura, entrevistado para um programa cultural da RTP (breves comentários esses que nunca vi, diga-se de passagem). A exposição esteve integrada no 6º Salão Lisboa de Ilustração e Banda Desenhada. O designer da exposição, Jorge Silva (agradeço a info ao Marcos Farrajota), ampliou e integrou um texto meu na cenografia. O evento decorreu de 2 de Junho a 3 de Julho de 2005.
Não sou propriamente adepto de ir em busca de origens, mas, a julgar pelo artigo da revista
The Comics Journal e pela entrada na
Wikipedia sobre o romance gráfico, nota de rodapé número oito, em que remete para um
texto meu, nota de rodapé número dois, ao que parece, proclamei Guido Buzzelli como "the first self-conscious author in comics" (o primeiro autor de banda desenhada consciente de o ser). Agora prefiro não ser tão acertivo, mas uma coisa é inegável, antes do catálogo do
Terzo Salone Internazionale dei Comics, em baixo, que decorreu de 30 de Junho a 2 de Julho de 1967 em Lucca, na Itália, não vejo ninguém que lhe possa disputar o lugar.
Comics Almanacco, Junho de 1967
Eppur... basta ver a capa do Comics Almanacco, da autoria de Francesco Bonvicini, mais conhecido por Bonvi, para verificar que o romance gráfico, como dizemos agora, La rivolta dei racchi, de Guido Buzzelli, é um corpo estranho integrado num contexto que ainda não sabe como acolhê-lo. É verdade que nem tudo é o que parece: a ilustração de Bonvi é claramente paródica, criada desde um ponto de vista underground. E é também verdade que Mario Bologna começa, no texto de introdução à obra, por comparar Spartak, o protagonista da história, alter ego de Buzzelli, com Superman e Diabolik para chegar à conclusão de que estava perante algo de diferente. Ninguém disputa isso, mas são precisamente as comparações e as paródias que denunciam um tempo de transição, em que ainda é muito forte a presença do que foi e muito ténue o que vai ser. Ainda assim, seria injusto para com o prefaciador se não o citasse e se não lhe elogiasse a argúcia:
O ponto não está tanto em sublinhar os modos de refazer as categorias tradicionais em Buzzelli, mas na recusa das próprias categorias tendo em vista uma nova concepção da banda desenhada.
Escrever isto, em cima do acontecimento (em 1967!), revela uma clarividência muito próxima do milagre; mas há mais: Mario Bologna continua e explica como as estruturas narrativas (leio Vladimir Propp nas entrelinhas) são radicalmente diferentes e como a realidade (ou a ideologia, se, pela minha parte, quiser ser mais preciso) aparece em surdina enquanto que "Para Buzzelli, pelo contrário, a realidade é ponto de partida e ponto de chegada". Brilhante, simplesmente, brilhante!...
Guido Buzzelli foi céptico e pessimista politicamente numa época em que a esquerda mais impôs, um pouco por todo o lado, ideias de revolução e de "Maios de 68". Foi um desenhador ímpar que utilizou o seu meio de eleição, a banda desenhada, para enfrentar e dar corpo aos seus fantasmas, ou, como disse o próprio, às suas "dúvidas e medos". Não vou insistir em caminhos críticos já trilhados por mim e por outros; vou antes terminar este post com algo que, parece-me, nunca foi dito: Guido Buzzelli tinha um pensamento visual simbólico. Provou-o ao criar as suas quimeras e alegorias (o Agnone, por exemplo). É dessa forma que temos de descodificar as estátuas que pontuam a sua obra. Só desse modo se entendem: não há objecto mais alegórico do que uma estátua num local público:
"I labirinti", Il Fumetto N. 7, Setembro de 1972 (Charlie Mensuel #29, Junho de 1971, mas assinada num ano marcante, 1968)
Numa simples vinheta que pode passar despercebida na voragem da leitura encontramos um nível de descodificação mais especificamente narrativo na interacção das personagens e um nível simbólico nos elementos restantes. É verdade que estamos num mundo pós-apocalíptico, mas mesmo que imaginemos uma reconstrução da estátua, numa espécie de filme mental em rewind, verificamos que os fios não estão ali por acaso. Estátuas em sítios públicos são homenagens, mas também são marcas de poder. Colocar instalações electricas tão perto de monumentos que deveriam ser respeitados significa que estes perderam a vigência; outros senhores reinam agora, numa luta sem fim... Por outro lado, há algo de perverso no facto de que a estátua represente um anjo: símbolos do bem, em Buzzelli os anjos são, no seu absolutismo axiológico, tão terríveis e despiedados como os demónios. Uma vez que estes últimos representam as pulsões, Guido Buzzelli até tinha mais simpatia por eles e representou-se em ilustrações como demónio mais do que uma vez...
Passaggio pedonale, 1991
No quadro acima, que esteve presente na exposição do Palácio Galveias e em que Grazia Buzzelli viu uma manifestação do bulício da vida (foi o que me disse, na altura), eu vejo algo de mais sinistro: peões cabisbaixos e apressados andam, como marionetas, sob o comando de bonecreiros representados pelas estátuas as quais, aqui, são tudo menos decadentes. E lá estão o condottiere e o anjo, duas faces da mesma moeda. O facto de estarem à direita (o militarismo) e à esquerda (as boas intenções; lobos com pele de cordeiro) significa que não há saída para a rat race.
À maneira de pós-scriptum ainda proponho mais uma ilustração de Guido Buzzelli. Fica aqui como homenagem ao fundador da Editorial Presença, Francisco da Conceição Espadinha:
Violon dans le métro, 1981
2 comments:
"the first self-conscious author in comics"
--O Topffer não teve a mesma consciência? Ou então o que é que quer dizer exactamente "self-conscious"?
A afirmação é discutível, mas como disse uma vez no Nemo, tudo é discutível. Seja como for foi por isso que escrevi preferir agora não ser tão acertivo (há um problema óbvio de subjectividade na apreciação). Seja como for não ponho tanto o acento tónico na parte do "self-conscious", mas na parte do "author". Se ainda me recordo de coisas que li há muito Töpffer foi muito claro quanto às suas intenções em divertir os alunos e em enveredar pelo seu tipo de historietas e de desenho porque a perda de visão o impedia de pintar. Nestas condições acho que a ideia de autor estaria longe da sua auto imagem (hoje há quem o veja com outros olhos, claro, mas adiante... e, se calhar, até estou enganado e tu tens razão). O que aconteceu a Guido Buzzelli, segundo o que me disse Grazia Buzzelli, não ouvi dizer, foi que desenhou e escreveu La rivolta dei racchi e quando apresentou o putativo livro (isto também é importante, não era um projecto de série comercial) a vários editores estes nem sequer percebiam porque é que ele se tinha dado ao trabalho se ninguém lhe tinha encomendado o sermão, por assim dizer. A edição no Comics Almanacco, por decisão de Rinaldo Traini, foi uma solução de recurso. Buzzelli foi um autor quando todos trabalhavam para a indústria. Quer isto dizer que na indústria não há autores? Claro que não, mas fazendo parte de uma engrenagem dificilmente se exprimem livre e conscientemente. Os melhores são autores "malgré tout", não porque sejam "self-consciously authors".
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