Uncle Scrroge #69 (Maio de 1967)
Tal como aconteceu a milhões de leitores de banda desenhada Disney, vulgo, em Portugal, "patinhas", diverti-me, naqueles já longínquos anos de 1960, com as histórias criadas por Carl Barks.
Muitos trabalhadores da indústria cultural eram anónimos e tanto mais foi assim quanto mais recuarmos na história, quer falemos da arte de massas contemporânea quer dos oficiais de Rembrandt. Apesar disso, leitores com mais sentido crítico do que a criança, a aproximar-se dos dez anos de idade, que eu era, perceberam que havia histórias publicadas sob a chancela "Disney" que eram diferentes de todas as outras. Sem terem maneira de saber quem era o autor, chamaram-lhe, "o bom artista".
Abro aqui um parêntesis retórico para acrescentar alguma nuance ao que escrevi acima: não é bem o sentido crítico que está em causa; uma criança não racionaliza o que consome e é-lhe bem indiferente quem criou ou deixou de criar seja o que for. Há até relatos de leitores que se lembram de, muitos anos depois, descobrirem que havia uma mão humana por detrás dos desenhos que tinham admirado. Talvez a magia actuasse aqui de forma tão misteriosa como é, para mim, neste exacto momento, toda a tecnologia necessária à criação e difusão do que estou a escrever.
Lembro-me, mas será mesmo verdade?, de uma encadernação de tipo tijolo, cartonada e com capas verdes, de lombada arredondada e, provavelmente, algumas letras gravadas, no lombo e/ou na capa. Lembro-me de estar sentado numa cadeira baixa em frente ao lume de chão com a antologia apoiada nos joelhos enquanto o vento me trazia o som, que agora se me afigura algo fantasmático, do apito do comboio, não sei se com locomotiva a vapor, se já a diesel, nesses anos de Planos de Fomento.
Uncle Scrroge #69 (Maio de 1967)
Provavelmente vou ligar memórias diferentes, até porque, na vinheta acima, também se vê uma locomotiva, mas recordo uma sensação estranha de familiaridade e reconhecimento quando reli (só pode...) a história de Carl Barks "The Cattle King". À conta disso estive tentado a comprar o comic book que a contém a um dos dealers presentes no festival de banda desenhada de Nova Iorque, mas, na altura, meados dos anos de 1990, a especulação no mercado dos floppies de segunda mão já fazia estragos. Foi só anos mais tarde, para dar outro salto temporal que, graças ao eBay o adquiri, finalmente... Hoje voltei a folheá-lo e a sensação desvaneceu-se, ou seja, já não sou aquelas duas pessoas, o que encontrou e o que reencontrou, que fui no século passado.
Nemo #10, Fevereiro de 1992
Para além de um par de resenhas curtas, escrevi três vezes sobre Carl Barks. Na primeira, acima, ainda segui a estrutura típica dos textos integrados na sub-cultura ou, para usar uma designação alternativa, naquilo a que podemos chamar, o fandom. Comecei com a descrição de um episódio banal, passei à formação do barksdom e, finalmente, cheguei onde todos estes textos pretendem chegar: à hagiografia. Ainda assim considero que o artigo não é completamente desprovido de valor porque, por entre dados biográficos, fiz um paralelismo com a obra de John Ford e alinhavei algumas características das personagens e da mundividência de Carl Barks. Deve ser também o único texto meu em que aparece a expressão, com a coisa ainda vigente, "União Soviética".
Nemo #25, Junho de 1997
O segundo texto (acima), escrito cinco anos depois, como se vê, é de um fôlego completamente diferente e surpreende-me, ao relê-lo agora, o quanto, na altura, estava metido na obra barksiana. O calcanhar de Aquiles é a descrição, mais ou menos pormenorizada, do enredo de várias histórias que considerei chave para o entendimento da ideologia, de raiz rural, seja lá isso o que for, que está por detrás de várias aventuras de Carl Barks, sobretudo aquelas em que o Tio Patinhas é protagonista.
O meu terceiro texto sobre Carl Barks pode ler-se aqui. Foi publicado no blogue de Noah Berlatsky, The Hooded Utilitarian em 3 de Janeiro de 2012. A intenção era escrever uma crítica à The Complete Carl Barks Disney Library da editora Fantagraphics, sobretudo à maneira imprópria, na minha opinião, como as histórias foram recoloridas. Apesar disso, a certa altura dá-se uma mutação e passo, com recurso a várias citações, a defender sobretudo o Barks satírico assim como a encarar o "elephant in the room": as representações racistas e a menorização dos povos do terceiro mundo, tal como denunciada por Dorfman e Mattelart.
O que representa Barks para mim, hoje? Não está na lista dos meus autores favoritos, mas isso não quer dizer nada. Estas listas mudam ao favor do vento, por assim dizer e só me dei ao trabalho de a elaborar, confessando, ao mesmo tempo, a minha impotência perante a tarefa gigantesca de reler tudo e, lá está, não confiar na réstia de memória de leituras, por vezes, muito longínquas, para manifestar uma filosofia diametralmente oposta à que está por detrás de todas (e são mesmo todas, não exagero um milímetro) as listas semelhantes, em papel ou que circulam na Internet. Talvez esteja neste carácter militante, que presidiu também à criação deste blogue, a explicação para a exclusão, por inconsciente que fosse, de Carl Barks, um autor comercial (e todos o tentam ser, bem sei...). Ainda assim, o meu propósito, no já recuado ano de 2008, quando The Crib Sheet começou o seu percurso, era terminar com um post sobre ele, como que a redimir, de algum modo, os muitos ataques aqui feitos à indústria, em nome da arte.
PS Se tiverem pachorra, e acho que ninguém vai ter, como até digo no link, leiam aqui o texto do meu amigo Matthias e a minha discussão acalorada com o muito saudoso Kim Thompson (e acólitos), a worthy opponent if I ever knew one. Parafraseando o título do post, parece-me que a Fantagraphics também esteve algo lost nesta ocasião.
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