Wednesday, September 9, 2020

Momentos Marcantes na Vida de Um Leitor de Banda Desenhada - 3 - O Príncipe Valente

 


Clássicos Da Banda Desenhada #1, Príncipe Valente, Dezembro de 1972

Não tenho um local ou episódio específicos para relatar, mas muito me ligou, nos anos de adolescente, jovem adulto, e, até, não tão jovem ao Prince Valiant de Harold R. Foster. Recordo sobretudo a prancha dezanove; essa chegada a Camelot que tanto fascina o jovem príncipe e que se pode ver, abaixo, num restauro de Manuel Caldas, o maior especialista mundial da série.


Príncipe Valente 1937-38 - O Início, Dezembro de 2005 (19 de Junho de 1937)

A vinheta tem tudo para agradar a um adolescente que, ainda por cima, gostava das histórias da história, sobretudo da Idade Média. Isto porque há na imagem espectacularidade e um virtuosismo gráfico evidente. A delicadeza do traço no segundo plano provoca um efeito de perspectiva aérea que, juntamente com a perspectiva linear (o tamanho diminuto dos habitantes do castelo) e a ocupação do espaço quase todo da vinheta, nos diz que, apesar da distância a que ainda se encontra, o palácio-fortaleza não perde nada da sua imponência. A linha oblíqua que vai dos cavaleiros às nuvens, no canto superior direito, cria um movimento ascendente que, apesar da mole imensa, dá leveza e elegância à composição. A linguagem corporal das personagens mostra-nos três atitudes diferentes: Sir Negarth, sabiamente colocado na sombra de Gawain (a indicar algum sentimento depressivo), ligeiramente curvado, mostra que, sendo prisioneiro, tem preocupações muito para além da contemplação do sublime; por sua vez Gawain, com o tronco vertical e o queixo levantado, mostra orgulho no monumento e na cultura, a dele próprio, que criou tal maravilha; enquanto o jovem Val, praticamente em pé sobre os estribos e em movimento de recuo, demonstra surpresa e assombro perante o espectáculo que tem diante de si.

Claro que esta é uma Idade Média de fantasia, muito mais próxima dos delírios românticos de Ludwig II (esta Camelot faz lembrar Neuschwanstein) ou da pacotilha dos cenários de  Hollywood do que de qualquer assomo de reconstituição da realidade histórica. Por outro lado, como se pode ver pelo cotejo das duas imagens acima (a primeira também representa Camelot), a consistência não era propriamente uma preocupação...


Envelope milagrosamente salvo do caixote do lixo (não se falava ainda em reciclagem) que, algures na década de 1970, conteve um exemplar do jornal do Cuto vindo de Lisboa para o assinante número 415. Ao viver no interior, ainda é pelo correio que o assinante número 415 continua a receber muita da cultura que consome. 

A julgar, tanto pela data do álbum da Editorial Presença, cuja capa está reproduzida acima, como pela primeira aparição do Príncipe Valente no jornal do Cuto, a 17 de Maio de 1972, com a vinheta em que surge Camelot a 23 de Setembro, esse parece ser o ano do meu encontro com a personagem e, mais do que isso, pode também ser uma data simbólica para marcar o início do meu fascínio pela banda desenhada norte-americana dos jornais.


The Smithsonian Collection of Newspaper Comics, 1977

Se bem que publicado na década anterior, foi no início dos anos de 1980, já estudante na ESBAL (hoje, FBAUL), que encontrei o calhamaço (26 x 35 x 4 cm) The Smithsonian Collection of Newspaper Comics na montra da, se não me engano, livraria do jornal O Século, entre a tabacaria Mónaco e o café Nicola, hoje, livraria Leya no Rossio. Perdi-me durante muitas horas nestas páginas que me deram a conhecer a riquíssima tradição da banda desenhada norte-americana dos jornais e me fizeram sonhar com as reedições em fac-simile que só nos últimos tempos se tornaram mais ou menos correntes. Deve ser por isso que me provoca uma grande azia ver oportunidades perdidas por editores que reeditam sem o menor respeito pelo material que publicam e pelos seus leitores.



Em cima: "The King's Musketeers and The Man in the Iron Mask", Lion, 22 de Fevereiro de 1964
Em baixo: "Os Mosqueteiros do Rei Em O Homem Da Máscara de Ferro", jornal do Cuto #45, 10 de Maio de 1972
Se bem que na edição em álbum Roussado Pinto, editor da Portugal Press, fez uma tradução mais fiel das lacónicas palavras de Leonard Matthews, na edição do jornal do Cuto o escritor policial Ross Pynn entrou numa das suas divagações habituais, com laivos de nacionalismo em tempos de guerra colonial, ainda por cima. A legendagem feita à máquina de escrever (com um erro ortográfico!) também não tem justificação e desfeia o conjunto. Idem o jornalismo amarelo, em baixo.

Três momentos principais marcam a minha admiração pela série de Hal Foster. Durante um tempo, enquanto adolescente, tive por hobby ampliar vinhetas de banda desenhada para o tamanho de posters A2, o que, diga-se de passagem, me ajudou muito a ter uma ideia mais clara das proporções. Ampliei três vinhetas da série "Princípe Valente", as duas de Camelot e uma terceira, bem como outra vinheta retirada do romance gráfico Tarzan, O Filho Das Selvas de Burne Hogarth, livro que importei do Brasil. De todo esse trabalho resta-me, hoje, uma ampliação da parte superior da última vinheta da adaptação do romance de Alexandre Dumas, O Homem Da Máscara de Ferro, desenhada pelo chileno, radicado na Argentina, Arturo del Castillo para a revista inglesa Lion e reproduzida acima nas versões original e portuguesa. No segundo momento fiz um trabalho extenso sobre a série para a cadeira de Estética III do curso de Pintura da ESBAL sob a orientação do professor António Sena (Toé), ao que parece, agora habitante da ilha do Pico. O terceiro momento é, para mim, o mais importante: marca, no dia 17 de Março de 1990, o encontro com uma reportagem de João Paiva Boléo, na revista do jornal Expresso, sobre um tal de Manuel Caldas. Daí até escrever, graças à admiração comum que tínhamos pelo príncipe, para a morada que se indicava em rodapé, iniciar uma amizade que se vai desenvolvendo à distância e começar a escrever para o fanzine Nemo, editado pelo Manel, foi apenas um pequeno passo...

O que resta hoje desta minha admiração adolescente pela banda desenhada dos jornais norte-americanos em geral e pela série Prince Valiant, em particular (a tal que o Duque de Windsor disse ser "the greatest contribution to English literature in the past hundred years")? Muito pouco, para dizer a verdade... Continuo, por inércia, a ter o fetiche das reedições, desde que estas sejam feitas de acordo com os mais rigorosos critérios filológicos e continuo a achar valor, técnico, poético, estético e, até, filosófico, numa pequena franja, mas, como disse neste mesmo blogue, algo falha, mesmo nos melhores exemplos... Algo que ligue estas produções artesanais, com estruturas industriais por detrás, ao que somos, à nossa condição. Isto acontece porque os jornais já se encontram suficientemente cheios de horrores para, ainda por cima, sobrecarregarem os leitores, numa secção, os comics, dedicada à evasão, com mais problemas e dilemas. Foi esta limitação, fatal ao aparecimento da grande arte, que não permitiu a estes autores, alguns verdadeiramente brilhantes, realizarem um potencial que, nunca o saberemos com certeza, provavelmente tinham...

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