Wednesday, October 7, 2020

Momentos Marcantes na Vida de Um Leitor de Banda Desenhada - 7 - Daredevil


Frank Miller e Klaus Janson (cores de Glynis Oliver?), Daredevil The Man Without Fear! #169, Março de 1981

Desta vez não há que enganar: corria o ano de 1981 quando vi, no portal de uma tabacaria, algures em Lisboa, o comic book acima, misturado com todo o tipo de revistas. Não era normal estarem comic books norte-americanos expostos em tabacarias nacionais, por isso, foi uma surpresa para mim encarar com este. Mas a surpresa maior estava-me reservada no interior, logo ao folhear a capa. O mundo mediático entrava, pela mão de Frank Miller, no mundo dos comics: na primeira página as linhas de delimitação das vinhetas estavam substituídas pelas linhas de contorno aparente de receptores de televisão e, em colagem, havia uma referência ao filme realizado por John Huston, The Maltese Falcon, como se pode ver abaixo:



Mas essas, digamos, surpresas, foram relativamente menores se comparadas com a página abaixo (que tempos aqueles em que se fumava no cinema e, ainda por cima, se mostrava o reprovável acto às crianças e adolescentes em historietas publicadas em floppies!):


Num género, o dos super-heróis, em que a acção é o centro narrativo (pantufadas, lambadas, raios e coriscos a torto e a direito), a prancha acima, pela sua quietude e concentração impressionou-me. Dá, do estrépito à surdina, o bulício da cidade e repare-se também como as três vinhetas em incrustação diminuem de tamanho com a diminuição de intensidade dos sons.

Na história abaixo, gostei, e ainda gosto, do diálogo entre as duas personagens, a fazer lembrar o teatro, diálogo esse em que os super poderes, a não ser pela ausência, Storm perdeu-os, não têm qualquer papel.


Chris Claremont e Barry Windsor-Smith (cores de Glynis Wein ou de Christie Scheele?), "Lifedeath a love story", X-Men #186, Outubro de 1984 

Em conclusão, no género de super-heróis gosto de momentos de quietude e da parte soap; quer dizer: gosto de tudo o que nem é super nem é heróico. Mas nada disto era assim há quarenta anos; nessa altura não fazia esta distinção e fui comprando muitos mainstream comic books, a maioria do início dos anos de 1970, e um ou outro da década anterior, que apareciam misteriosamente à venda numa livraria que existia na praça dos Restauradores, em Lisboa, num edifício que já foi banco e que hoje é The Boulevard - Lisbon Apartments, habitação de luxo entre o hotel Avenida Palace e o Cineteatro Éden; o qual, apesar do nome e da antiga função, é agora um aparthotel. Foi no edifício projectado por Cassiano Branco, e criminosamente alterado para satisfazer o capricho de um milionário inglês, que fui, ainda criança, pela primeira vez ao cinema; o aparthotel, já agora, tem uma bela vista de Lisboa do alto do terraço onde, no Verão, suponho, se toma o pequeno almoço. Mas, já que o tema são os super-heróis, e para citar um argumentista famoso no género, Peter David, I digress... Disse "misteriosamente" porque os comic books à venda já tinham sido publicados há uma década ou mais e nem sequer estavam em mint condition, longe disso. Alguém me sugeriu, acho, mas, nem disso tenho a certeza, que viriam do aeroporto onde, em expositores, se venderiam aos turístas. No fundo, deixemos o mistério em paz, que é onde os mistérios devem ficar, sob pena de deixarem de o ser.


Jack Kirby e Mike Royer (cores não atribuídas), "Himon!", Mister Miracle #9, Agosto de 1972

Do pequeno acervo que reuni então faziam parte alguns comics de Jack Kirby. Aliás, dentro do género não podia deixar de citar the king of comics, cujas splash pages são lendárias, como se pode ver, e cuja arte me fascinou nos anos de jovem adulto. Há pontos que ainda posso recuperar na obra de Kirby, como aquilo a que Charles Hatfield chamou o sublime tecnológico: a representação de máquinas titânicas; podemos ver um exemplo acima. Há também uma vertigem cósmica que ainda posso admirar. O problema é que todas as histórias que Jack Kirby desenhou são completamente idiotas. Sobre este tema disse o que pensava aqui.

Art Spiegelman, em entrevista a Gary Groth, viu muitíssimo bem um problema mais grave do que a simples idiotice: a arte de Jack Kirby, no seu titanismo, é arte fascista. Mas esse é um problema intrínseco ao género. O maniqueísmo que divide as personagens em heróis e vilões é uma infantilização inaceitável para alguém que exija à banda desenhada que tenha tanta subtileza e complexidade, tantos tons de cinzento, como os melhores exemplos nas outras artes. O que, em vez disso, o género dos super-heróis nos dá é uma representação moral a preto e branco. Uma vez que não há dúvidas sobre quem é o vilão, o sistema judicial torna-se desnecessário. Mais, segundo o American Monomyth, o herói encontra-se sozinho e tem de lutar não só contra os baddies, mas também contra as instituições do Estado, e / ou contra incompreensões várias por parte da sociedade. Ambas as entidades são encaradas como um empecilho à verdadeira justiça: a que reúne num só ser, polícia, juiz e carrasco. Chama-se a isso: vigilantismo.


Alex Ross, Justice Vol, 1, 2006
Qualquer diferença entre a imagem acima, o realismo socialista e a arte nazi é pura coincidência.

Outro problema do género é, em tempos de #metoo, aquilo a que Laura Mulvey chamou the male gaze (o olhar masculino). Com efeito, não só as super-heroínas acima são 17% do total como têm uniformes, para lhes chamar de alguma maneira, que as deixam escassamente vestidas e são pouco adequados às tarefas violentas que têm de praticar. O objectivo é, claramente, saciar, de forma moderada embora, as hormonas saltitantes dos leitores adolescentes. 

No género de super-heróis, ou, de forma mais geral, no entretenimento cujo marketing apela ao público predominantemente masculino em busca de descargas de adrenalina, adolescente ou não, tudo se resolve à lambada e há uma glamourização / esteticização e desactivação dos efeitos da violência. Acontece aquilo a que chamo a violência à Daffy Duck.

Juntem-se ainda personagens com a expessura psicológica do papel em que foram impresas e fórmulas narrativas mais do que estafadas e dá vontade de dizer, I rest my case, mas ainda vou acrescentar mais um ponto: de cada vez que se estreia um filme (sim, porque toda esta idiotice predomina hoje nas salas de cinema fazendo esta arte, mais do que centenária, regredir às origens: ao espectáculo de feira) em que a protagonista é uma super-heroína ou em que o super-herói pertence a uma minoria, sauda-se a ocasião como se fosse uma vitória para as mulheres ou para essa mesma minoria. Francamente, não vejo qual a diferença entre ser um super-herói heterossexual de pele clara a dar cabo de magotes de gente ou em ser uma mulher de pele rosada ou alguém com um tom de pele mais escuro ou um homossexual a executar a mesma acção. A propósito do filme em que Wonder Woman mata soldados alemães durante a Primeira Guerra Mundial, lembrei-me das imagens aterradores criadas por Otto Dix, e outros, e pergunto-me como é possível alguém pensar que o género ou a origem de quem mata faz alguma diferença.

Termino com a imagem absurda e inenarrável abaixo a provar, se necessário fosse, que tudo isto não passa de propaganda a favor do império. Dar o male gaze como exemplo de feminismo é mau de mais e é um absolutely clueless statement, if I ever saw one!...


Ilustração de Alex Ross, who else?

Posto tudo isto resta-me referir que há muito não leio um livro de super-heróis. Ainda assim queria excluir Watchmen de Alan Moore, Dave Gibbons e John Higgins, mini-série publicada entre Setembro de 1986 e Outubro de 1987, de apreciações negativas. Só foi pena ter um final fraquinho, mas escapou à mediocridade geral porque questionou o género de forma inteligente. Em jeito de homenagem termino com uma citação de Alan Moore, a primeira, e com outra de Martin Scorsese:
Os super-heróis da minha juventude tinham cães vestidos com capas e máscaras! É óbvio que não representavam mais nada para além do poder da imaginação. Eu vejo os super-heróis actuais como o centro de uma evasão sem sal… Até entendo o desejo de fazer a infância durar para sempre, mas isso é impossível. Não há nada de errado em gostar deste ou daquele super-herói, mas ninguém tem de conviver com eles a vida inteira, como se fossem uma espécie de armadura mágica. 
Tentei [ver filmes de super-heróis,] [...] [m]as não são cinema. Honestamente, o que mais se lhes aproxima, apesar de bem feitos, com os actores a fazer o melhor que podem, dadas as circunstâncias, são os parques temáticos. Não é o cinema de um ser humano a tentar comunicar emoções e experiências psicológicas a outro ser humano.

My thoughts exactly!... 

4 comments:

MMMNNNRRRG said...

belo artigo!
curiosamente nos anos 90 essa livraia ainda existia e no final da sala apareciam coisas estranhas como esta: https://comixjoint.com/americanflyer.html para mim foi mais um eye-opening!
abraços
M

Isabelinho said...

Obrigado, Marcos! Vou pôr esse link em html: aqui
Obrigado também pelas tuas preciosas informações sobre as livrarias.

Isabelinho said...

Pergunto-me se a livraria em questão seria esta? Só que a fotografia é de 1910. Nos anos de 1980 e 1990 a fachada estaria mudada, suponho. Infelizmente não encontrei mais nada na Internet.

MMMNNNRRRG said...

a livraria seria nos restauradores sim, de quem sai do metro de frente a esses hotéis... por isso pode ser bem essa, impossível de saber o nome com estes meus velhos 47 anos, hahahaha mas diria que sim. ainda hoje pergunto porque raios levei um comix invés de uns super-heróis que era isso que consumia principalmente... se acreditasse nos astros...
abraços
M