Sunday, November 2, 2025

Estância Do Sino Coberto de Diniz Conefrey

 



"Porque tudo se move, numa entoação / A cerzir um ritmo vascular."

É esta a epígrafe com que Diniz Conefrey inicia o seu livro Estância Do Sino Coberto. Aviso à navegação que tantas vezes lemos apressadamente antes de virar as páginas para começar aquilo que julgamos ser a leitura da obra. Digo "julgamos" porque, e falo por experiência própria, não pretendo apontar o dedo a ninguém, num livro de banda desenhada lemos os textos, absorvemos distraidamente as imagens, e seguimos em frente num ritmo infernal que nos faz chegar rapidamente ao fim. Este síndroma da leitura flash, está, provavelmente, na origem da proverbial logofobia dos leitores de banda desenhada. Textos didascálicos longos desaceleram a leitura e poucas coisas há que irritem mais um típico leitor de banda desenhada. Uma legenda, se for extensa, perturba o tempo de leitura, e, ainda por cima, retira o espaço à imagem sabendo nós que os leitores de banda desenhada são imagófilos na proporção inversa em que são logofóbicos. Acrescento que este facto não impede que sejam poucas as imagens a reter a atenção durante mais do que breves instantes no acto da leitura. Aprecia-se o estilo do autor, não esta ou aquela imagem em particular porque o ritmo acelerado a isso obriga. Façamos então uma leitura tartaruga de alguns aspectos de Estância Do Sino Coberto. Não enquanto enredo, nem enquanto tratamento das personagens e demais parafernália da narratologia literária, mas enquanto textos e imagens concretas e concretos. Tudo se move, imagens e textos a cerzir um ritmo vascular, que é o ritmo da vida... Mas estaquemos então... mesmo incorrendo no alto risco de paragem cardíaca rítmica que isso implica...
Uma grelha quase invisível, onde se incrusta uma forma, que parece representar uma tomografia computadorizada ao cérebro, divide a primeira página. Eflúvios, primeiros sinais do fogo destruidor, pássaros mensageiros e flores de lótus, símbolo de pureza e renascimento, a desrespeitar, libertar-se da grelha, completam a imagem.  Seguem-se vinhetas em que a biblioteca de Nalanda é consumida pelas chamas. Nenhum humano se avista porque todos foram chacinados. Assistimos à reacção dos animais que vivem na floresta, talvez já habitados pela alma dos monges mortos. As últimas imagens desta sequência inicial mostram-nos ossadas de vacas sagradas, prova de que houve violência contra os símbolos da não violência, para acabar numa composição abstracta, a primeira de muitas, em que ruínas se reflectem na água: o corpóreo e o fluido, a beleza que nasce da destruição e, voltando atrás, à primeira página, a dizer-nos que, como acreditava o protagonista, Xuanzang, o mundo é uma criação do cérebro, a verdadeira biblioteca e, esse, não foi destruído. A prova temo-la logo na vinheta abaixo onde o saber emanado de Nalanda se mostra vivo e actual. 
Em montagem paralela, Xuanzang comparte protagonismo com Nora. A partir da página 33 Nora relata, por entre padrões de tecidos e grandes planos da sua face, a sua circunstância. Fá-lo numa sequência de quatro páginas abstractas cuja origem Diniz Conefrey não esconde. Trata-se de um motivo visual que lhe é caro: em Meteorologias são refegos geológicos e outros turbilhões, aqui são as dobras de panejamentos que se metamorfoseiam. Na minha leitura não é indiferente que a sequência começe e termine com tecidos translúcidos, os quais tanto servem para mostrar como para esconder, tal como sucede com a abstracção visual. Em todo o caso, são composições enleantes, em cores sobretudo neutras. A própria palavra "abstracção" pode ter o sentido de abstrairmo-nos do mundo. Fazer vaguear a nossa mente por territórios outros e é curiosa a vinheta em que são os gansos a chamar Nora à terra. 
Há mais sequências em que a abstracção é usada como aquela em que o passageiro europeu dialoga com Nora no comboio, mas, agora, as formas são menos enleantes, mais estáveis e com linhas negras que as estruturam. As cores modificam o negro quando, por assim dizer, lhe passam pela frente. Efeito que surge pela primeira vez e se repete, em tons marmoreados escuros, antes da sequência final. Sequência essa quase só visual e a terminar onde o livro começou, no arrancar do véu de Maia e no renascimento anunciado pela flor de lótus. Metempsicose de Nora em corça? Na liberdade que Diniz Conefrey nos oferece como leitores, é uma interpretação possível...