Monday, March 30, 2015

Dominique Goblet On Autobiography


"Dominique Goblet On Autobiography," Relief Vol. 2 # 3, 2008, a film by Pascal Lefèvre

Thursday, March 12, 2015

Algumas Considerações Sobre o Romance Gráfico



O prometido é devido e, por isso, vou retomar um dos fios narrativos da minha última entrada (fonte: Heidi MacDonald, "New Codes For Graphic Novels" [novos códigos para os romances gráficos], The Pulse, Janeiro de 2002).

A expressão "graphic novel" [romance gráfico] teve um êxito que os seus promotores em 2001 provavelmente não esperavam. Talvez assim tenha sucedido porque a dita veio preencher uma necessidade real. Muitos sentiam que o nome "comics" para a banda desenhada (termo este bem mais neutro, diga-se de passagem) estava mal aplicado. Isto por duas razões: 1) muita banda desenhada pertence a outros géneros narrativos que não o registo cómico; 2) devido a antecedentes históricos profundamente enraízados na grande maioria das consciências, a banda desenhada ("comics") era vista como arte menor (se é que era vista sequer como arte), exclusivamente orientada para o entretenimento de menores e de quem tem menor inteligência (tudo isto em modo maior).

Não pretendo com este texto historiar o percurso do romance gráfico cujos antecedentes poderia remontar às calendas gregas (um dos meus exemplos favoritos é este, outro é este). O que aqui pretendo é escrever umas breves notas sobre a história recente do boom de utilização que a expressão teve; trata-se apenas de um significante e não de um significado (não pretendo debater a polémica definição da coisa), muito menos de um qualquer referente.

Enfim, retomando o fio à meada:

Pelos motivos que já indiquei no post anterior os editores de banda desenhada de qualidade sentiam que algo tinha de mudar num status quo que os penalizava tremendamente. Basta ir ao blogue de Pedro Cleto e ler alguns comentários inenarráveis que por lá deixaram os integrantes da subcultura (a propósito da colecção de "novelas" gráficas do jornal Público) para perceber muita coisa. Eu ataco 50% dos livros, mas eles atacam-nos a todos comparando-os desfavoravelmente à série XIII. (Este ataque à esquerda e à direita - para utilizar a metáfora política - demonstra que se ficou mais ou menos em meias tintas. Por outro lado não se percebe porque razão José de Freitas vem p'ráqui mandar vir enquanto que lá nem tuge nem muge limitando-se a prestar civilizadamente alguns esclarecimentos. Verdadeiramente hilariante é a ideia de que se trata de "livros difíceis". A subcultura classifica como "livros difíceis" tudo o que seja mais pesado do que os balões de ar que consome. Digamos: um pedaço de esferovite? Mas adiante...)

Quem prefere XIII (ou, num contexto norte-americano, Spider-Man, por exemplo) a C´était la guerre des tranchées nunca investirá um cêntimo em banda desenhada de qualidade. Se considerarmos que a subcultura alimenta as lojas da especialidade (as quais criam um ambiente que atrai os seus membros - com posters e action figures - mas que repele toda a outra possível clientela) percebe-se como os livreiros nos ditos guetos escondem o material "invendável" nas prateleiras dos fundos.

Foi neste contexto que Chris Oliveros, da editora canadiana Drawn & Quarterly, mobilizou Eric Reynolds da Fantagraphics e Peggy Burns da DC Comics para fugir à comic shop e tentar conquistar um lugar nas livrarias generalistas. Para isso precisava de um nome genérico que servisse de sinalização do assunto nas estantes. Escusado será dizer que "comics" estava mais do que excluido à partida. A escolha recaiu, como se sabe, em "graphic novel".

Até prova em contrário quem inventou a expressão "graphic novel" foi Richard Kyle (Capa-Alpha # 2, Novembro de 1964), mas nestes primeiros anos a expressão não tinha o significado que tem hoje (embora, para Kyle, fosse sinónimo de banda desenhada adulta). Significava um misto de texto tipográfico e desenho como pode ver-se numa prancha de arte original de Archie Goodwin e Gil Kane.


Archie Goodwin (e), Gil Kane (d), Blackmark, Bantam Books, Janeiro de 1971.

A meados da década de 1970, e, sobretudo, depois do livro de Will Eisner A Contract With God and Other Tenement Stories (Baronet Books, 1978) [Um Contrato Com Deus] a expressão "graphic novel" perdeu o conceito de híbrido literatura / desenho para significar algo assim como: história ou histórias de banda desenhada autoconclusiva(s) com assunto sério e publicada(s) em livro, de preferência com lombada.

Retomando, de novo:

Os já citados Oliveros, Reynolds e Burns, juntamente com Rich Johnson (também da DC), Terry Nantier (um terço da NBM) e Art Spiegelman, que dispensa apresentações a quem não pertence ao clube nerd, reuniram-se  em 16 de Janeiro de 2002 com os representantes do BISAC (Book Industry Standards and Communication: normas e comunicação da indústria do livro). Decidiu-se então criar a etiqueta "Comics & Graphic Novels" que permite albergar várias subdivisões como se pode verificar aqui

É esta a solução ideal? Nem por sombras. Mas o processo conseguiu duas coisas: 1) arrumou e tornou mais visível a banda desenhada nas livrarias; 2) fez entrar nas consciências que há banda desenhada séria e a sério (o humor pertence a outra secção: Humor / Form / Comic Strips & Cartoons). Continua, no entanto, a trapalhada e podemos ver graphic novels de Batman ao lado de Gast ou Here? Infelizmente sim, mas, pelo menos, em muitos cérebros essa misturada já não existe.



Gil Kane (e, d), Robert Franklin (Archie Goodwin) (e), His Name Is... Savage! # 1, Adventure House Press, Junho de 1968 (capa, com Lee Marvin como protagonista, e página 14). Não foi utilizada a expressão "graphic novel", mas (possivelmente) o redactor-chefe, Larry Koster, tinha consciência de que estava a lançar uma nova tradição ("Beginning a New Comics Tradition!"). A expressão usada foi "Illustrated Stories". É também interessante que se tenha aproximado o formato do livro ao formato dos velhos pulps

A propósito de nomes veja-se o que escrevi no blogue The Hooded Utilitarian: 

John Crosby (1912 – 1991) foi um crítico dos meios de comunicação de massas. Numa dessas circunstâncias felizes que acontecem uma vez na vida veio-me parar às mãos uma das suas colunas “Radio in Review” [a rádio em revista]. Foi publicada no jornal New York Herald Tribune [...] e é sobre East of Fifth [a leste da quinta [avenida]]. Perspicaz, Crosby percebeu (tal como Göethe, quando viu os desenhos de Töpffer, muitos anos antes) que o livro tinha uma forma que na altura não tinha nome: o romance gráfico [ou devo passar a utilizar a tradução errónea, "novela gráfica"?]. Eis o que ele escreveu na crónica “Radio in Review: East of Fifth, West of Superman” [a rádio em revista: a este da quinta, a oeste do super-homem] (Julho de 1948; tradução minha):
[…] East of Fifth, de Alan Dunn, um cartoonista que é também um escritor elegante e subtil, é a história de vinte e quatro horas na vida de um grande prédio da moda em Manhattan, e, claro está, dos seus ocupantes, contada com cartoons e texto a acompanhar. 
Falo disto porque o livro do senhor Dunn pode muito bem ser uma forma de arte novinha em folha. Uma extensão sofisticada e literata da banda desenhada com consequências horripilantes para escritores que não sabem desenhar. Este não é o primeiro livro em que cartoons e texto contam uma história completa mas é, pelo que sei, a primeira vez que alguém tenta criar literatura séria neste campo. No mundo actual em que não se lê [se Crosby cá voltasse!], quando todas as artes e muito do jornalismo tende para a imagem, o livro de banda desenhada para adultos do senhor Dunn é certamente importante, um pouco inquietante, e absolutamente cativante.


Tuesday, March 10, 2015

Ainda a Colecção de Romances Gráficos do Público

Os fans que lêem livros de banda desenhada não querem realismo e os leitores de literatura não esperam encontrá-lo na banda desenhada.
Harvey Pekar, "In This Interview: Stories About Honesty, Money, and Misogyny" [nesta entrevista: histórias sobre honestidade, dinheiro, e misoginia], entrevista a Gary Groth, The Comics Journal # 97, Abril de 1985, 47 (tradução minha).
Parece que  estou em maré de padrinhos: depois de João Bénard da Costa eis que as circunstâncias (cf. comentários de José de Freitas ao post "Colecção de Romances Gráficos do Público") me levaram a outra influência, talvez não tão importante, mas suficiente para me fazer ver a situação deplorável do campo da banda desenhada (Bourdieu).

Estava-se no já longínquo ano de 1985 (há trinta anos, no less!) e Harvey Pekar já diagnosticava o problema perfeitamente. Se substituirmos a palavra "realismo" por algo mais abrangente chegamos ao seguinte: os leitores assíduos só consomem banda desenhada infanto-juvenil e light, enquanto que leitores mais sofisticados fogem da banda desenhada a sete pés porque têm uma ideia estereotipada do que esta seja. A banda desenhada de qualidade fica, assim, em terra de ninguém. O fenómeno do romance gráfico (nome incluído; um dia destes conto a história...) não passou de uma tentativa para contrariar esse estado de coisas evitando misturar tudo no mesmo local (a chamada loja especializada de banda desenhada). Isto porque, claro, que pessoa no seu perfeito juízo entra sequer num local cheio de bonecada ridícula? A ideia foi criar uma secção nas livrarias generalistas... Se Maomé não vai à montanha...

Depois do preâmbulo chegamos àquela que é, segundo parece, a minha frase polémica: "se o peso comercial é critério tenho razão em dizer que foi uma ocasião perdida porque TODAS as ocasiões vão ser ocasiões perdidas."

Perdoe-se-me o escurso, mas veja-se a minha lista de doze filmes abaixo:

Greed - Erich von Stroheim
Young Mister Lincoln - John Ford
The Man Who Shot Liberty Valance - John Ford
Le Mépris - Jean-Luc Godard
L'Atalante - Jean Vigo
Sansho Dayu (O Intendente Sansho) - Kenji Mizoguchi
Saikaku Ichidai Onna (Oharu - A Vida de Uma Cortesã) - Kenji Mizoguchi
Tokyo Monogatari (Viagem a Tóquio) - Yasujiro Ozu
Banshun (Primavera Tardia) - Yasujiro Ozu
Roma Città Aperta - Roberto Rossellini
El - Luis Buñuel
Un condamné à mort s'est échappé - Robert Bresson

(E deixo de fora muitos outros como Ladri di biciclette de Vittorio de Sica ou Viridiana de Buñuel ou Rashomon e Ikiru de Kurosawa ou La règle du jeu de Renoir ou The Searchers, naturalmente.)

Poderia fazer listas semelhantes a propósito de uma exposição (Rembrandt, Chardin, Picasso) ou de uma colecção de CDs (Bach, Mozart, Beethoven) ou de grandes livros (Cervantes, Tchekov, Paul Celan)... Não é a última merda da merda dos super-heróis, mas algo na lista acima carece de peso comercial? Porque motivo é que a banda desenhada é diferente então?

A resposta é simples: por variadas razões o campo da banda desenhada é delimitado por uma subcultura que produz um determinado tipo de fan(ático) (eu que o diga que sou atacado há décadas pelos membros do clube) e, o que é pior, também produz um determinado tipo de editor e um determinado tipo de crítico (a este propósito Harvey Pekar, de novo, e, de novo, com tradução minha: "Comics and Genre Literature" [a banda desenhada e a literatura formulaica], The Comics Journal # 130, Julho de 1989, 127, 128):
Ultimamente têm aparecido alguns críticos de banda desenhada com formação superior [...]. Infelizmente, a maioria deles gosta da mesma banda desenhada idiota que os fans vulgares adoram - por exemplo, levam a sério o trabalho de Frank Miller.
Qualquer critério de qualidade que tenha em conta este tipo de peso comercial não pode ser tomado a sério. Qualquer critério de qualidade que inclua Eisner e Jodorowsky também não.

Sunday, March 8, 2015

Yoshihiro Tatsumi



Eric Khoo, Tatsumi, 2011 (trailer). (Disclaimer: the opinions expressed above are not mine.)

Yoshihiro Tatsumi, who's important for this blog because he coined the term gekiga, died yesterday.




João Bénard da Costa - The Critic - Coda

I wrote the last posts in Portuguese because they were about a Portuguese film critic and columnist. It made no sense to me to write about him in English. But I changed my mind, at least in what concerns the coda because it is about John Ford's (et al) The Searchers and because it also is about images and words, etc...

So, without further ado, here's my translation (speaking of which all the translations are mine):
I told you - and what a poor job it was - ten minutes (if that) of a two hour film [The Searchers, John Ford et al, 1956]. Wanting to do it right, not even a book would be enough. I left out almost everything and told nothing about the silence of the remainder. Who said that film is about plots and if you know the “story” you know the film?
          João Bénard da Costa, "A Casa dos Edwards" [the house of Edwards], Crónicas:   
          Imagens Proféticas e Outras [columns: prophetic and other images], 3º Vol., Documenta,             2014, 124, 125.

In “Une certaine tendence du cinema français” [a certain tendency of French cinema] (Cahiers du Cinema # 31, January 1954) François Truffaut refuted the idea, understandable in a time when the great literati were buried in the pantheon and gave their names to squares and avenues, that “great cinema” had to adapt “great books”. This was the verge of the auteurs theory, explained by Truffaut himself a year later (Cahiers du Cinéma # 44, February 1955) in "Ali Baba et la "politique des auteurs"" [Ali Baba and the auteurs politic].

João Bénard da Costa defended these theories, as we can see from the epigraph above. I’m not going to discuss here the validity, or lack thereof, of a theory that counted six decades recently. I’ll just question the fetish of the “artistic vision.” Is it enough to the Jacques Beckers of this world to show technical mastery and a certain coherence from film to film to produce masterpieces? I don’t think so, but, as I said before, that’s a discussion for another time…

What interests me now is brief and simple. It’s João Bénard da Costa’s use of the word “story” in the excerpt above. To adopt a tech tone let’s see what Mieke Bal said in Narratologie [Narratology: Introduction to the Theory of Narrative] (H&S, 1983, 4):
All the events, in their chronological order, in their sets, in their relation with the actors that cause or suffer them, that’s what the story is.
Narratologists (Todorov, Genette, bien sûr, C. Bremond – that’s what the Dicionário de Narratologia [dictionary of narratology] by Carlos Reis and Ana Cristina M. Lopes, Almedina, 2000, 195, tells us) distinguish story from expression, story from the speech or the narrative that conveys it – récit. The story is, then, an inhabited and coherent space-time suggested in the work (it is connected with concepts like: diegesis, fabula, etc…). The truth is that whoever tells a tale summons a past world. fictitious or not (once upon a time…), and adds on a bit or two (does it his or her way).

"A Casa dos Edwards" describes the Chekovian sordino (I cited it in my last post) that emanates from the images (from a sound or two also). But the images can be narrative too. Didn’t they tell the stories of a book for centuries: and I mean The Bible. They’re as much on the side of the story as they are on the side of its expression (not unlike words). At the beginning of The Searchers the images reveal what words hide? John Ford invested in them a supplement of meaning that isn’t in the script (by pudency? João Bénared da Costa thinks so)? Does it matter? Don’t they describe sequences of actions, relationships among the characters (and how!, what a cast direction!) the spacio-temporal context in which everything occurs (occurred)? (This last point reminds me of a detail that I find a little odd: how come the ranches of the Edwards and Jorgensens are set in the desert? Mythomane Ford always preferred to sacrifice verisimilitude to legend – if the legend becomes fact…) I know that the plot is written and the word reigns over it. I also know that we will never have a true access to the story because the final product is the story “transformed” by the narration (with analepses, prolepses or, more modestly, with ellipses: in The Searchers there’s a seven year ellipsis which is another detail of the film that I find odd.)

To sum everything up, and incurring in the risk of repeating myself: what I want to say is just this: as Derrida taught us all dichotomies are always false. I don’t think that we should face the romantic relationship between Ethan (John Wayne) and Martha (Dorothy Jordan), brother and sister-in-law, as being part of the expression, not as part of the story, which is what João Bénard da Costa wanted. I know that lots of people deny the narrative capability of images and that for many people to tell = literature. We are immersed again in the Lessingian denial of Horatius’ ut picture poesis. Frankly, I remain with the Latin poet of genius.

On the other hand these things are never clear cut. A voice inflexion (“is it me, is it many others, is it there, is it not there, but does Martha say “Ethan” with a bigger commotion than it’s to be expected towards a brother-in-law […]?,” 122) is it story or narrative (is it there, or is it not there?)?



John Ford (d) e Winton C. Hoch (p), et al, The Searchers, 1956. John Wayne’s character enters, literally, the story in media res. He was away during the time of the two wars in which he participated: the American Civil War (1861 – 1865) and the Second French Intervention in Mexico (1864 – 1867). We know nothing about what happened before that. In the image above the two men are preparing to be part of a posse against the Comanches. Samuel’s (Ward Bond) discomfort is perfectly detectable. He feels awkward (three is a crowd) in the presence of such an affectionate demonstration (not to mention what he knows and we don’t). Because visual illiteracy is as serious a problem as the properly called – if not more: people don’t even acknowledge it while the other is obvious – the affair between Ethan and Martha, or so the chronicles say, went undetected by the spectators at the time (or should I say by the spectators in any time?).

Saturday, March 7, 2015

Nota


Héctor Germán Oesterheld (e), Arturo del Castillo (d), "Jinetes Vengadores" [cavaleiros vingadores], Hora Cero Suplemento Semanal # 21, 22 de Janeiro de 1958. Randall e Martine.

Reparo agora que juntei nos meus últimos posts aqueles que foram os maiores criadores de westerns da história: John Ford, James Edgar, Tony Weare. Faltou apenas a dupla Oesterheld, Pratt e a dupla Oesterheld, Castillo. Mas, cá para mim, e se excluir "Randall", dos dois últimos, esses vêm a seguir. (Mas também há páginas memoráveis em "Sgt. KIrk", claro.)

João Bénard da Costa - O Crítico - Coda

Contei-lhes - tão mal - dez minutos (se tanto) de um filme [The Searchers, John Ford et al, 1956] com duas horas. Se vos quisesse contar bem, nem um livro me teria chegado. Deixei de fora quase tudo e pouco disse do silêncio do resto. Quem é que disse que o cinema era questão de argumentos e quando se sabe a "história" se sabe o filme?
João Bénard da Costa, "A Casa dos Edwards", Crónicas: Imagens Proféticas e Outras, 3º Vol., Documenta, 2014, 124, 125.
Em "Une certaine tendence du cinéma français" [uma certa tendência do cinema francês] (Cahiers du Cinema # 31, Janeiro de 1954) François Truffaut rebateu a ideia, compreensível em tempos de incenso aos grandes literatos, enterrados no panteão e com direito a baptizar praças e avenidas, de que o "grande cinema" seria o que adaptasse os "grandes livros". Estava-se, claro está, a um passo da teoria dos autores, explicada pelo próprio Truffaut um ano depois (Cahiers du Cinéma # 44, Fevereiro de 1955) em "Ali Baba et la "politique des auteurs"" [Ali Baba e a política dos autores].

João Bénard da Costa perfilhava estas teorias, como se comprova pela citação em epígrafe. Não vou aqui discutir da validade, ou falta dela, de uma teoria que fez recentemente 60 anos. Questiono apenas o fetichismo da "visão artística". Será que basta aos Jacques Becker deste mundo demonstrarem coerência de filme para filme e mestria técnica para criarem obras-primas? Não creio, mas, como disse, é uma discussão para outra altura...

O que me interessa, de momento, é breve e simples. Resume-se à utilização que João Bénard da Costa faz da palavra "história" no excerto acima. Para adoptar um tom técnico vejamos o que escreveu Mieke Bal Narratologie [narratologia] (H&S, 1983, 4; tradução minha):
O conjunto dos acontecimentos na sua ordem cronológica, na sua localização, na sua relação com os actores que os causam ou que os sofrem, constitui a história.  
Os narratólogos (Todorov, Genette, bien sûr, C. Bremond - diz-nos o Dicionário de Narratologia de Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes, Almedina, 2000, 195) distinguem história de expressão, história do discurso ou narrativa que a veícula - récit. A história será, assim, um espaço-tempo habitado e coerente sugerido na obra (liga-se a conceitos como: diégese, fábula, etc...). A verdade é que quem conta um conto evoca um mundo passado, fictício ou não (foi assim...), e acrescenta um ponto (fá-lo à sua maneira).

"A Casa dos Edwards" descreve a surdina Tchekoviana (a qual citei no post anterior) que se desprende das imagens (e de um som ou outro). Mas as imagens são narrativas, ou não tivessem elas passado séculos a narrar as histórias de um livro: A Bíblia. Tanto estão do lado da história como da expressão dela (tal e qual como as palavras). No início de The Searchers as imagens revelam o que as palavras escondem? John Ford investiu nelas um suplemento de sentido que não plasmou (por pudor? João Bénard da Costa apostou que sim) no guião? Que importa? Não descrevem elas sequências de acções, relações entre as personagens (e de que maneira!, que direcção de actores!), o contexto espacio-temporal em que tudo se passa(ou)? (Neste último ponto faz-me alguma "espécie" como é que o rancho dos Edwards e o rancho dos Jorgensen se situam em pleno deserto: o mitómano Ford sempre preferiu sacrificar a verosimilhança à lenda - if the legend becomes fact...) Bem sei que o argumento é escrito e nele reina a palavra. Também sei que nós nunca teremos um verdadeiro acesso à história porque o produto final é já a história "transformada" pela narração (analepses e prolepses ou, mais modestamente, apenas com elipses: em The Searchers há uma de sete anos que é outro daqueles pormenores do filme que "faz espécie").

Resumindo, e correndo o risco de me repetir, o que quero dizer é só isto: tal como Derrida nos ensinou, as dicotomias são sempre falsas. Não me parece que devamos encarar a relação amorosa entre  Ethan (John Wayne) e Martha (Dorothy Jordan), cunhado e cunhada, como fazendo não parte da história, que é o que quis João Bénard da Costa, mas da expressão. Bem sei que há quem negue às imagens a sua capacidade narrativa e que para muita gente contar = literatura. Estamos outra vez metidos na negação Lessinguiana do ut pictura poesis de Horácio. Por mim, francamente, fico-me com o genial poeta latino.

Por outro lado, estas coisas nunca são lineares. Uma inflexão da voz ("Será de mim, será de tantos, estará lá, ou lá não estará, que Martha diz "Ethan" com comoção maior do que a de esperar por um cunhado [...]?", 122) será história ou narrativa (estará lá ou lá não estará?)?


John Ford (r) e Winton C. Hoch (f), et al, The Searchers, 1956. A personagem de John Wayne entra, literalmente, na história in media res. Esteve ausente do seio da família Edwards durante o tempo das duas guerras em que participou: a Secessão Norte-Americana (1861 - 1865) e a Segunda Intervenção Francesa no México (1864 - 1867). Também não sabemos nada do que se passou antes disso. Na imagem acima os dois homens preparam-se para partir em perseguição de um grupo de comanches. Percebe-se o desconforto de Samuel (Ward Bond) ao sentir-se a mais (três é multidão) perante tal demonstração de afecto (para já não falar do que ele sabe e nós desconhecemos). Como a iliteracia visual é tão grave ou mais do que a propriamente dita - as pessoas nem se dão conta de que ela existe enquanto que a outra é gritante - o affair entre Ethan e Martha, rezam as crónicas, passou despercebido aos espectadores da altura (ou devo dizer, de qualquer altura?).

Tuesday, March 3, 2015

João Bénard da Costa - O Crítico


Clara Azevedo, João Bénard da Costa, Expresso - A Revista, 1 de Dezembro de 1990.

Aparentemente este post não tem nada a ver com banda desenhada. Aparentemente, digo, porque se não tem muito a ver com qualquer aspecto específico da supracitada arte (na condição altamente duvidosa de que tal exista...), tem tudo a ver com a crítica da dita.

Foi com grande regozijo que deparei (stumbled, diria no blogue The Hooded Utilitarian) com o volume três de Crónicas: Imagens Proféticas e Outras de João Bénard da Costa. Quando a editora dos dois primeiros volumes, a Assírio e Alvim, de boa memória, foi vendida à Porto Editora perdi toda a esperança de ver mais crónicas de João Bénard da Costa reeditadas. Eppur... parece que fui homem de pouca fé... A Sistema Solar, editora de que nunca tinha ouvido falar, mas que me dizem ser subsidiária da Assírio (leia-se: Porto), resolveu continuar a colecção com a compilação das crónicas publicadas no Público em  2006.

João Bénard da Costa foi, intelectualmente, e de longe, a pessoa mais importante para mim. Importante porque lhe devo anos inesquecíveis enquanto frequentador assíduo da Cinemateca Portuguesa (isto nos já muito idos inícios dos anos de 1980), Importante porque lhe admirei, a par da de Erwin Panofsky, a incomensurável erudição (ou alguém acredita que se ganhou alguma coisa quando se substitiu a cultura clássica pela cultura masscult norte-americana?). Importante pela sua prosa camoniana (ou deveria antes dizer "vieiriana"?) e concetista (não é debalde que João Bénard da Costa admirava o barroco italiano), prosa essa que nunca poderia imitar porque, por um lado, o meu domínio da língua é muito limitado e porque, por outro, os meus textos mais importantes foram escritos em inglês, língua que ainda domino menos. Importante, finalmente (será?), pelo crítico que João Bénard da Costa não foi, para empregar um dos paradoxos que lhe eram caros. Os textos de João Bénard da Costa não são crítica no sentido ortodoxo do termo (no sentido que empregaríamos em relação a David Bordwell, por exemplo), mas são, com certeza, crítica no sentido mais nobre da palavra: pelo seu crivo rigorosíssimo e pelo seu entendimento dos meandros do humano espelhados nas obras. Se é isso que lhe podemos objectar nestes tempos de politicamente correcto, anti-humanismo e antiessencialismo (tudo doutrinas que também professo), é precisamente essa subjectividade que faz a sua grandeza. Um crítico objectivo, para além de não existir tal coisa, é alguém que só regista factos e isso, se faz parte, não é o todo.

E a banda desenhada, onde entra no meio disto tudo? Vou citar o próprio João Bénard da Costa a propósito de Anton Tchekov: "[...] será que em Tchekov alguma personagem é alguma vez odiosa? Não foi ele - foi Strindberg - quem disse que os homens não são maus mas também não são bons. Tchekov não seria capaz de o dizer assim com tanta rudeza. É uma surdina, surdina de maldade que acompanha todas as bondades, surdina de bondade que acompanha todas as maldades." (Crónicas: Imagens Proféticas e Outras vol. 3, 96.)

E de novo pergunto, o que é que isto tem a ver com banda desenhada? Com a má banda desenhada incensada pelos críticos da dita, tudo (pela negativa); com a boa banda desenhada geralmente desprezada pelos mesmos, tudo (pela positiva). Porque a doença que mais afecta a chamada crítica de banda desenhada é a cegueira perante o maniqueísmo. Acrescente-se a cegueira perante imagens racistas, misóginas e outras... Acrescente-se, a cegueira...



Manuel Mozos, João Bénard da Costa, Outros Amarão as Coisas que Eu Amei, Rosa Filmes, 2014 (trailer).