Thursday, October 7, 2021

Dumbing Down

Com alguns, ou bastantes, diria, anos de atraso, como é da praxe no jardim à beira mar plantado, o dumbing down chegou finalmente a Portugal. João Paulo Cotrim é que me devia ter convidado para participar no ciclo de conferências. Podia, sei lá?, falar do racismo de Hergé?

Sunday, January 3, 2021

Momentos Marcantes na Vida de Um Leitor de Banda Desenhada - 13 - Chago Armada

Chago Armada, El Humor Otro, 1963

Desta vez sei como tudo se passou. O primeiro contacto que tive com a obra de Santiago "Chago" Armada foi nas páginas da revista International Journal of Comic Art (IJOCA) que assino desde que deu a lume o primeiro número, em 1999. Refiro-me a um artigo de Caridad Blanco de la Cruz, logo no segundo ano de publicação, de que se pode ver em baixo a primeira página. 

Por coincidência esta é a entrada treze, nesta série de posts, o que me parece apropriado, do ponto de vista de quem é supersticioso, claro, não só porque estou a escrever a segunda versão deste post, depois da primeira, prontinha a publicar, ter misteriosamente desaparecido no éter da Internet, como o fatídico número se adequa à situação do autor visado...

Refiro-me a que, apesar de Chago Armada ter sido guerrilheiro na Sierra Maestra durante a revolução cubana, não se ter livrado de ver o seu livro El Humor Otro ser sequestrado durante nada mais nada menos do que vinte e cinco anos. Há aspirantes a Jdanov em todas as revoluções e quanto mais se grita liberdade na rua, menos esta pode ser exercida...

Caridad Blanco de la Cruz, com tradução de Gisela Gil-Egui, "Always the Other One: Salomón", International Journal of Comic Art, Vol. 2, #1, Primavera de 2000

Dou a palavra, com tradução minha, a Caridad Blanco (in Salomón, Ediciones Asterisco, 2017):

A saída de Salomón das páginas [do jornal] Rotograbado de Revolución, por causa da censura, significou o final abrupto do momento mais alto do humor de vanguarda nesse período [início dos anos de 1960] e de uma banda desenhada de tipo novo. Os problemas que a personagem levantou, a incompreensão que sitiou o enigmático mutante, acusado de indecente, de estar afastado do compromisso social que aqueles anos exigiam, acabaram com o exercício conceptual que Chago levava a cabo na imprensa. As suas tiras filosóficas (juntamente com as de Rafael Fornés), convidavam à reflexão, causavam surpresa e desconcerto. Queriam fazer pensar e não obter dos leitores um sorriso fácil. [Mas estes leitores eram] os mesmos que na rua, na taberna ou escrevendo ao jornal, se perguntavam sobre o significado do inusual anti-herói.

Rafael Fornés, referido acima, é o autor da personagem Sabino, como se pode ver na reprodução abaixo:

Rafael Fornés, Sabino, 2006

Não resisto a traduzir, para as citar, as palavras do próprio Chago Armada, as quais corroboram as de Caridad Blanco (in Signos #21, 1978):

Para mim, o humorismo gráfico, a partir de 1960, é um meio artístico como qualquer outro, sem limitações. Desenho com a mesma liberdade com que se compõe um poema, se pinta um quadro, ou se escreve um ensaio. Recuso as concepções sobre o humor como simples consolador bufo, comercial, cruel, panfletário, idiota. Busco factos e motivações transcendentes. Não desprezo o riso, ou o sorriso, mas procuro-o sensível, inteligente, outro. O meu propósito fundamental é fazer pensar.

Quem fala assim só pode ser um autor no sentido mais profundo da palavra. Alguém que, sem renegar a sua própria cultura (como fugir?), se mostra independente face ao dinheiro ou, neste caso, face à ideologia do Estado. Fazer esta escolha é pagar um preço bem alto e foi o que aconteceu a Santiago Rafael Armada Suarez. De certa forma não seria preciso a censura para que, a viver num país de segundo ou terceiro mundo e a praticar uma arte considerada socialmente de terceira, Chago sofresse os efeitos da periferia geográfica e da periferia estética. Mas vou ainda mais longe: no primeiro mundo o trabalho de Chago nunca seria ou será reconhecido, mesmo sem entraves, porque aí só se gasta incenso com a mediocridade, como demonstram as inúmeras e ridículas listas que aqui mesmo denunciei...

Sobre Chago Armada escrevi neste blogue uma nota breve e fiz alusão ao seu trabalho numa ou noutra entrada (é interessante o conceito, que já tinha esquecido, de "caricatura séria", tão apropriado a este post), mas, sobretudo, escrevi um breve texto para a revista Satélite Internacional, do colectivo alíngua, de que se pode ver em baixo a primeira página. Este é, diga-se de passagem, de entre os que escrevi, um dos meus textos favoritos:


Satélite Internacional #2, Dezembro de 2002
É curioso como a tese, ao tempo, estapafúrdia de incluir Frans Masereel no corpus da banda desenhada se tornou hoje um lugar-comum. Quando escrevi em cima que "banda desdenhada" não era gralha, acontece que menti. Até que era gralha, mas, tal como aconteceu a Picasso no caso que relatei, não tive coragem de a corrigir.

Sobre Sa-lo-món escreveu ainda (mais uma vez com tradução minha) e entre outras coisas, Chago Armada:
Nasce da Dialéctica Materialista, de leituras de Marx e de outros. É tese, antítese e síntese. Um homem determinado, um indivíduo e, ao mesmo tempo, todos os humanos, a colectividade. Com ele quis criar uma personagem tão vasta, complexa e contraditória como a própria humanidade. Pode ser intelectual; analisa friamente a sua circunstância. Mas também é emotivo e os seus arroubos sentimentais e irracionais conduzem-no a situações imprevistas.

Saul Steinberg exerceu uma forte influência nos caricaturistas cubanos da década de 1960. Em Chago Armada, desde logo, que pode ter lido Marx, mas viu Steinberg e em René de la Nuez. Acho, no entanto, que por ir mais fundo na condição humana, sem receio até, da escatologia, em ambos os sentidos, o discípulo superou o mestre.

Termino com a reprodução da capa de um dos livros mais importantes de Saul Steinberg e com um desenho, a aproximar-se da poesia de Chago, retirado do interior do mesmo; com uma ilustração e uma prancha de Chago Armada e com um desenho de outro dos grandes caricaturistas norte-americanos, William Steig:


Saul Steinberg, The Passport, 1954



De Salomón a Sa-lo-món: o percurso de um anti-herói (Signos #21, 1978). Sa-lo-món dentro da caixa, para além de ser uma metáfora da vinheta de banda desenhada, como disse o póprio Chago, faz lembrar o desenho de William Steig que se pode ver em baixo:


William Steig, "People Are No Damn Good", in The Lonely Ones, 1942


Prancha muito provavelmente publicada no jornal Rotograbado de Revolución, mas aqui reproduzida a partir da revista Signos #21 de 1978.

Ilustro o desenho acima com o seguinte texto de Chago Armada com tradução, mais uma vez, da minha responsabilidade (Signos #21, 1978):
Em Sa-lo-món experimentei o que denomino movimento iterado homólogo, contrário ao da banda desenhada clássica o qual se empenha em reproduzir o movimento real da vida ou o do cinema. O que realmente se move, ao ler-se uma banda desenhada, são os olhos sobre o plano (limitado) do papel, de uma vinheta para a seguinte. Assim, pode ver-se Sa-lo-món repetir uma pose (não necessariamente idêntica), uma acção essencial, um movimento indispensável, sem exaltar o estatismo ou o resíduo de um movimento, mas dinamizando o conjunto. O movimento iterado homólogo de Sa-lo-món ou de outros elementos, a distancia continua ou descontínua, cria um ritmo que é espacial e temporal ao mesmo tempo.

Em baixo pode ver-se uma prancha abstracta de Chago Armada. Também neste campo o autor foi pioneiro e revolucionário:


Signos #21, 1978