Sunday, January 3, 2021

Momentos Marcantes na Vida de Um Leitor de Banda Desenhada - 13 - Chago Armada

Chago Armada, El Humor Otro, 1963

Desta vez sei como tudo se passou. O primeiro contacto que tive com a obra de Santiago "Chago" Armada foi nas páginas da revista International Journal of Comic Art (IJOCA) que assino desde que deu a lume o primeiro número, em 1999. Refiro-me a um artigo de Caridad Blanco de la Cruz, logo no segundo ano de publicação, de que se pode ver em baixo a primeira página. 

Por coincidência esta é a entrada treze, nesta série de posts, o que me parece apropriado, do ponto de vista de quem é supersticioso, claro, não só porque estou a escrever a segunda versão deste post, depois da primeira, prontinha a publicar, ter misteriosamente desaparecido no éter da Internet, como o fatídico número se adequa à situação do autor visado...

Refiro-me a que, apesar de Chago Armada ter sido guerrilheiro na Sierra Maestra durante a revolução cubana, não se ter livrado de ver o seu livro El Humor Otro ser sequestrado durante nada mais nada menos do que vinte e cinco anos. Há aspirantes a Jdanov em todas as revoluções e quanto mais se grita liberdade na rua, menos esta pode ser exercida...

Caridad Blanco de la Cruz, com tradução de Gisela Gil-Egui, "Always the Other One: Salomón", International Journal of Comic Art, Vol. 2, #1, Primavera de 2000

Dou a palavra, com tradução minha, a Caridad Blanco (in Salomón, Ediciones Asterisco, 2017):

A saída de Salomón das páginas [do jornal] Rotograbado de Revolución, por causa da censura, significou o final abrupto do momento mais alto do humor de vanguarda nesse período [início dos anos de 1960] e de uma banda desenhada de tipo novo. Os problemas que a personagem levantou, a incompreensão que sitiou o enigmático mutante, acusado de indecente, de estar afastado do compromisso social que aqueles anos exigiam, acabaram com o exercício conceptual que Chago levava a cabo na imprensa. As suas tiras filosóficas (juntamente com as de Rafael Fornés), convidavam à reflexão, causavam surpresa e desconcerto. Queriam fazer pensar e não obter dos leitores um sorriso fácil. [Mas estes leitores eram] os mesmos que na rua, na taberna ou escrevendo ao jornal, se perguntavam sobre o significado do inusual anti-herói.

Rafael Fornés, referido acima, é o autor da personagem Sabino, como se pode ver na reprodução abaixo:

Rafael Fornés, Sabino, 2006

Não resisto a traduzir, para as citar, as palavras do próprio Chago Armada, as quais corroboram as de Caridad Blanco (in Signos #21, 1978):

Para mim, o humorismo gráfico, a partir de 1960, é um meio artístico como qualquer outro, sem limitações. Desenho com a mesma liberdade com que se compõe um poema, se pinta um quadro, ou se escreve um ensaio. Recuso as concepções sobre o humor como simples consolador bufo, comercial, cruel, panfletário, idiota. Busco factos e motivações transcendentes. Não desprezo o riso, ou o sorriso, mas procuro-o sensível, inteligente, outro. O meu propósito fundamental é fazer pensar.

Quem fala assim só pode ser um autor no sentido mais profundo da palavra. Alguém que, sem renegar a sua própria cultura (como fugir?), se mostra independente face ao dinheiro ou, neste caso, face à ideologia do Estado. Fazer esta escolha é pagar um preço bem alto e foi o que aconteceu a Santiago Rafael Armada Suarez. De certa forma não seria preciso a censura para que, a viver num país de segundo ou terceiro mundo e a praticar uma arte considerada socialmente de terceira, Chago sofresse os efeitos da periferia geográfica e da periferia estética. Mas vou ainda mais longe: no primeiro mundo o trabalho de Chago nunca seria ou será reconhecido, mesmo sem entraves, porque aí só se gasta incenso com a mediocridade, como demonstram as inúmeras e ridículas listas que aqui mesmo denunciei...

Sobre Chago Armada escrevi neste blogue uma nota breve e fiz alusão ao seu trabalho numa ou noutra entrada (é interessante o conceito, que já tinha esquecido, de "caricatura séria", tão apropriado a este post), mas, sobretudo, escrevi um breve texto para a revista Satélite Internacional, do colectivo alíngua, de que se pode ver em baixo a primeira página. Este é, diga-se de passagem, de entre os que escrevi, um dos meus textos favoritos:


Satélite Internacional #2, Dezembro de 2002
É curioso como a tese, ao tempo, estapafúrdia de incluir Frans Masereel no corpus da banda desenhada se tornou hoje um lugar-comum. Quando escrevi em cima que "banda desdenhada" não era gralha, acontece que menti. Até que era gralha, mas, tal como aconteceu a Picasso no caso que relatei, não tive coragem de a corrigir.

Sobre Sa-lo-món escreveu ainda (mais uma vez com tradução minha) e entre outras coisas, Chago Armada:
Nasce da Dialéctica Materialista, de leituras de Marx e de outros. É tese, antítese e síntese. Um homem determinado, um indivíduo e, ao mesmo tempo, todos os humanos, a colectividade. Com ele quis criar uma personagem tão vasta, complexa e contraditória como a própria humanidade. Pode ser intelectual; analisa friamente a sua circunstância. Mas também é emotivo e os seus arroubos sentimentais e irracionais conduzem-no a situações imprevistas.

Saul Steinberg exerceu uma forte influência nos caricaturistas cubanos da década de 1960. Em Chago Armada, desde logo, que pode ter lido Marx, mas viu Steinberg e em René de la Nuez. Acho, no entanto, que por ir mais fundo na condição humana, sem receio até, da escatologia, em ambos os sentidos, o discípulo superou o mestre.

Termino com a reprodução da capa de um dos livros mais importantes de Saul Steinberg e com um desenho, a aproximar-se da poesia de Chago, retirado do interior do mesmo; com uma ilustração e uma prancha de Chago Armada e com um desenho de outro dos grandes caricaturistas norte-americanos, William Steig:


Saul Steinberg, The Passport, 1954



De Salomón a Sa-lo-món: o percurso de um anti-herói (Signos #21, 1978). Sa-lo-món dentro da caixa, para além de ser uma metáfora da vinheta de banda desenhada, como disse o póprio Chago, faz lembrar o desenho de William Steig que se pode ver em baixo:


William Steig, "People Are No Damn Good", in The Lonely Ones, 1942


Prancha muito provavelmente publicada no jornal Rotograbado de Revolución, mas aqui reproduzida a partir da revista Signos #21 de 1978.

Ilustro o desenho acima com o seguinte texto de Chago Armada com tradução, mais uma vez, da minha responsabilidade (Signos #21, 1978):
Em Sa-lo-món experimentei o que denomino movimento iterado homólogo, contrário ao da banda desenhada clássica o qual se empenha em reproduzir o movimento real da vida ou o do cinema. O que realmente se move, ao ler-se uma banda desenhada, são os olhos sobre o plano (limitado) do papel, de uma vinheta para a seguinte. Assim, pode ver-se Sa-lo-món repetir uma pose (não necessariamente idêntica), uma acção essencial, um movimento indispensável, sem exaltar o estatismo ou o resíduo de um movimento, mas dinamizando o conjunto. O movimento iterado homólogo de Sa-lo-món ou de outros elementos, a distancia continua ou descontínua, cria um ritmo que é espacial e temporal ao mesmo tempo.

Em baixo pode ver-se uma prancha abstracta de Chago Armada. Também neste campo o autor foi pioneiro e revolucionário:


Signos #21, 1978