1989
Conheço o Manuel Caldas já vai para vinte anos, mas, infelizmente, os dedos das duas mãos são demais para contar as vezes que nos encontrámos pessoalmente. A sua proverbial fobia a viagens e o final do Salão Internacional de Banda Desenhada do Porto atiraram a nossa relação de amizade para o espaço virtual. Na verdade, foi aí, no espaço virtual, ainda antes da Internet (ou seja, por carta), que nos fomos mantendo em contacto. Tenho ainda uma resma de papel com as missivas do Manel (suponho que ele não se importará com o tratamento informal), mas desenganem-se aqueles que, na posteridade, queiram publicar a nossa “importante” correspondência. Aposto que as minhas mensagens já foram parar, há muito, ao ecoponto azul numa das também proverbiais limpezas que o Manel decide fazer de vez em quando.
Não estive presente no início das publicações de Manuel Caldas, naquele já algo longínquo ano de 1986 (no mês de Março, para ser exacto) em que o Manel publicou o primeiro número do seu fanzine
Nemo. Tive no entanto a sorte, anos depois, de lhe poder comprar o
Nemo A5 o qual, entretanto, tinha crescido para A4 “ganhando” como colaborador regular quem a vós se dirige. Na “Introdução ao número 1 de
Nemo” pode ler-se: “De modo algum fruto de um labor criativo tão talentoso e artesal [sic] como o que assiste à confecção de uma banda desenhada, num trabalho delicado e longo não deixou, contudo, de assentar a realização deste fanzine. Mas, em lugar cimeiro, ele é fruto essencial de um imenso entusiasmo pela Banda Desenhada.” (Caso extraordinário e único: a capa foi paciente e delicadamente pintada a aguarela exemplar a exemplar!; se dúvidas houvesse quanto à veracidade da paixão acima declarada este facto, apenas, seria mais do que suficiente para as dissipar.) Na apresentação que lemos já está o Manel como ele é e foi: com a sua modéstia e a sua dedicação (o erro ortográfico só demonstra que ele também é humano). Talvez agora, vinte e cinco anos depois (alguém festejou estas bodas de prata?), quando decidiu ser um editor profissional, depois de traições (em Portugal) e desenganos (em Espanha) o Manel actual já não seja o mesmo Manel ingénuo daquele tempo. Mas de uma coisa tenho a certeza: quando o Manuel Caldas inicia um projecto é com a mesma integridade, empenho, honestidade, atenção aos detalhes, em suma, é com a mesma paixão e respeito pelos leitores que o leva a bom termo.
No início foi uma paixão comum pela série norte-americana “Prince Valiant”, o Príncipe Valente do muito nosso
Mundo de Aventuras (não sou do tempo de
O Mosquito e só brevemente comprei
O Primeiro de Janeiro), de Harold R. Foster, que nos uniu. Foi com enorme prazer que li as duas primeiras edições e a terceira de
Foster e Val (contribuí até, muito modestamente para esta última). Esse livro é central no trabalho editorial do Manel e pode servir-me para, simbolicamente, o colocar como peça primeira nas duas fases dessa obra: a artesanal e a profissional. A primeira (Edições Emecê) é impressionante em dedicação e carolice: relevo nela, para além dos já citados e históricos fanzine
Nemo e das duas primeiras edições de
Foster e Val, a edição comemorativa da revista
O Mosquito de Como Nasceu e Viveu (é inegável o amor do Manel pela banda desenhada infantil portuguesa, amor esse que não compartimos, aliás);
Béquinhas Beiçudo & Barbaças de Fernando Bento (na mesma linha);
A Trilogia das Mouras de Raul Correia e Eduardo Teixeira Coelho (todos em formato fanzine); bem como o fanzine
Zero e alguns livros artesanais:
As Capas de Eduardo Teixeira Coelho Para “O Mosquito” com douta introdução de António Dias de Deus;
Moira A Escrava de Roma de Alberto Salinas (conforme publicação no
Jornal do Cuto);
Max e Moritz de Wilhelm Busch (uma breve incursão pela banda desenhada do muy rico século XIX);
Anita e Filipim também de Fernando Bento;
Sunday por Victor Mora e Victor de la Fuente (uma das publicações mais importantes desta fase a merecer nova edição restaurada e a cores).
Setembro de 1994.
Outubro de 1993.
Não chamei “histórico” ao fanzine
Nemo porque fiz parte dessa aventura extraordinária, a que mais prazer me deu como crítico de banda desenhada (nunca mais vou esquecer os dias que eram, para mim, de festa, quando um novo
Nemo me chegava às mãos…). Chamei “histórico” ao
Nemo pelas contribuições do Manel o qual, infelizmente, foi cedendo cada vez mais, e com o passar do tempo, o espaço do fanzine aos seus colaboradores…
Recordo a estranha sensação que tive ao desembrulhar em casa um livrinho que escrevi e que Manuel Caldas editou no mesmo formato do seu fanzine
Nemo (anunciado na capa como edição extraordinária deste). Refiro-me a
Winsor McCay Visita o País do Sonho Pela Mão de Little Nemo, 22 Pranchas de Um Pioneiro da B. D.. Olhei para a capa e tive uma sensação esquisita de familiaridade e estranheza ao mesmo tempo. Durante uns segundos fiquei confuso e não percebi lá muito bem o que estava a acontecer. A referida capa tem duas vinhetas da famosíssima prancha da cama andante da série “Little Nemo in Slumberland” de Winsor McCay. O que o Manel fez foi eliminar o espaço intericónico e apagar as personagens na segunda vinheta a fim de produzir uma única imagem. Isto que parece fácil dito assim não o é de todo porque não bastou apagar: Manuel Caldas teve de reconstituir, no estilo de Winsor McCay, note-se, tudo o que ficou a faltar no “novo” desenho. É um feito notável de camaleonismo gráfico. É precisamente esta capacidade em encarnar outros estilos que não o seu que permite ao Manuel Caldas reconstruir, qual cirurgião plástico, aquilo que técnicas de impressão primitivas ou o tempo ou o que seja apagaram, pensava-se que, para sempre...
Março de 1992.
Com o advento da informática surgem as edições Livros de Papel e Libri Impressi. Desta nova e última fase sublinho o já citado Foster e Val, Os Trabalhos e os Dias do Criador de ‘Prince Valiant’ e as extraordinárias reconstruções, admiradas internacionalmente, sobretudo em Espanha, do inevitável Príncipe Valente de Hal Foster (nunca ninguém tinha verdadeiramente visto os desenhos de Foster antes da reconstrução levada a cabo por Manuel Caldas). A publicação a cores de Lance de Warren Tufts é também absolutamente notável. Para além disso há também a referir o humor com as séries Hagar, O Horrendo de Dik Browne e Ferd’nand de Mik ou, ainda, com desenhos de Hal Foster, o seu seminal Tarzan dos Macacos. Nas notas finais do referido livro Manuel Caldas escreveu: “Argumentar-se-á que não se justifica tanto trabalho para se poder ter das coisas uma visão melhorada apenas um pouco. Depende da proximidade a que ficarmos da plena visão dessa coisa. Depende, no fundo, de com quanto se satisfaz o nosso espírito. Mas se não nos aproximarmos das coisas nunca as veremos melhor.” O Manel percebe que os outros podem não sentir a mesma paixão que ele sente pelas obras que restaura e tem necessidade de se justificar. Como todos os visionários antes dele há momentos em que a incompreensão e o desalento o devem assaltar, sobretudo num mundo, como ele diz: onde há uma “classe em vias de extinção [a] dos que ainda compram e lêem livros de banda desenhada”. Somos cada vez menos e isso, infelizmente, é um facto insofismável…
Setembro de 2009.
Nos anos mais próximos o Manel também publicou dois clássicos norte-americanos em restauro exemplar: Krazy + Ignatz + Pupp de George Herriman (com tradução de João Ramalho Santos) e Os meninos Kin-Der de Lyonel Feininger (em formato tablóide!). Mas termino com um livrinho que me é caro, um dos raros a ser publicado duas vezes nas duas fases da vida de editor de Manuel Caldas: Dot e Dash de Cliff Sterrett (na primeira versão a preto e branco), Dot & Dash (na segunda a cores). Escrevi a introdução com o título mais simples em tempos mais simples: “A Poética da Simplicidade”, título esse actualizado para ““Dot & Dash”: a Poética da Simplicidade” na edição mais recente a qual tem o meu texto traduzido para duas línguas estrangeiras, inglês e espanhol (castelhano). (Lamento que no último caso haja uma gralha em “simplicidad”.) Não é aqui o lugar para defender um texto, que escrevi há já dezassete anos, do ataque cerrado que lhe foi dirigido por um dos cronistas do Jornal de Letras. Direi apenas que, como é óbvio para quem ler o que vou escrevendo, se me afastei de um certo gosto nostálgico pela banda desenhada infantil ou infantilizante mantenho as ideias que expressei no velho texto em causa, como é também óbvio ou, caso contrário, é de bom senso pensar-se que não permitiria a sua republicação.
Março de 1994.
Outubro de 2010.
Finalmente quero falar do projecto comum que não se concretizou (ninguém sabe quem detem os direitos dos desenhos): o meu muito admirado "Randall: The Killer", dos grandes Héctor Germán Oesterheld e Arturo del Castillo. São sobretudo quatro episódios publicados na modesta revistinha argentina
Hora Cero Suplemento Semanal no final dos anos 50 e que nunca foram, que eu saiba, reeditados (a não ser quase contemporaneamente, e duvido que estejamos a falar de toda a série, no Reino Unido com o título de
Ringo; ao facto se ficou a dever o pseudónimo do beatle Ringo Starr). Outras reedições com o título
Randall não passam de confusão com outras séries do Oeste em que del Castillo participou:
Garrett ou
Madigan,
Don Rover ou
Dan Dakota,
Kendall ou
Larrigan,
Joe Barrow ou
Bannister,
El Cobra ou
“Loco” Sexton (um dia gostaria de ver alguém desemaranhar este novelo).
Número 21, 22 de Janeiro de 1958: a única capa desenhada por Arturo del Castillo para as revistas Frontera.
Lamento Manel, mas termino com nova exortação para que publiques “A Lei da Selva” de Eduardo Teixeira Coelho tal como surgiu n’O Mosquito (esquece, por favor, o Jornal do Cuto). Sei que é fácil falar quando não estou a arriscar o meu dinheiro. Sei também que tens toda a razão: nós, os leitores de banda desenhada, somos uma espécie em vias de extinção e não há World Wildlife Fund que nos salve.
O Mosquito # 921, 21 de Abril de 1948.
PS O que é que passou pela cabeça dos editores de Quim e Manecas de Stuart Carvalhais para dispensarem os serviços de Manuel Caldas? Nisto eu e o cronista do Jornal de Letras estamos de acordo: se não tivessem dispensado os serviços do Manel não teriam publicado a bodega que publicaram. A relação qualidade / preço penderia facilmente para o primeiro factor. Assim… meu rico dinheirinho!...
Post integrado na justa homenagem promovida por
Manuel Santo.