Thursday, October 1, 2020

Momentos Marcantes na Vida de Um Leitor de Banda Desenhada - 6 - Héctor Germán Oesterheld e Hugo Pratt

 


Héctor Germán Oesterheld, Hugo Pratt, Ernie Pike, Fevereiro de 1976
A personagem Ernie Pike tem, em caricatura, claro, o rosto de Héctor Germán Oesterheld.

A memória tem uma maneira curiosa de funcionar. Comecei esta série de posts por recordações da minha primeira década de vida e tudo quanto veio a seguir está misturado numa amálgama de que não consigo desenredar o novelo. O meu único recurso para balizar o que se passou é tentar activar a lógica. Apesar da edição acima ter a data de 1976, não creio que a tenha adquirido nesse ano ou, sequer, nos anos imediatamente posteriores. Nos anos de 1970 o acesso a livros estrangeiros era muito limitado; a aldeia global era ainda demasiado grande. Se me deitar a adivinhar diria que devo ter adquirido esta colectânea italiana da série argentina "Ernie Pike" na livraria Op que existia em Lisboa, ao cimo da Calçada do Duque, vulgo Escadinhas do Duque, já quase no largo da Trindade, mais propriamente no número 49, hoje o Duque Brewpub, passe a pub.

Conhecia o trabalho de Hugo Pratt, como toda a gente, por causa da série "Corto Maltese". Ao ser assinante da revista Tintin, aí sim, em 1976, ainda me lembro da polémica que houve entre os leitores a propósito do preto e branco e do estilo de desenho de Pratt, talvez considerado demasiado apressado e esquemático. Hoje, quando a série foi canonizada, para mal dos meus pecados, diga-se, pode parecer estranho que, à data, muitos leitores se manifestassem contra a inclusão de "Corto Maltese" na revista de Diniz Machado e Vasco Granja. 

A história é conhecida, ou, se não é, eu conto: Cesare Civita nasceu em Nova Iorque e muito novo foi viver para Itália, de onde os pais eram originários e onde leis anti-semitas, emanadas pelo governo de Benito Mussolini, o obrigaram a emigrar. Voltou à big apple em 1938, e, mais tarde, em 1941, partiu em direcção a Buenos Aires. Por outro lado, Hugo Pratt começou a sua carreira de fumettista em Veneza, em meados da década de 1940. Ao fundar a Editorial Abril, a tal, a cujo ramo brasileiro, dirigido pelo irmão Vittore, agradeço ter lido as histórias de Carl Barks, Civita contratou Pratt e restante grupo de Veneza (Mario Faustinelli, Alberto Ongaro, Ivo Pavone, Dino Battaglia e Paul Campani); este último desenhou a série "Misterix", mas foi entregando os originais a partir de Itália. Iniciou-se então, nos começos da década de 1950, uma das colaborações mais extraordinárias da história da banda desenhada: Héctor Germán Oesterheld na escrita e Hugo Pratt no desenho. Não conheço, ou não me ocorrem, muitos pares argumentista / desenhador com a qualidade deste...


Ernie Pike, "Poilu", Fevereiro de 1976 


Hora Cero [mensual] #7, Novembro de 1957 
Já em Itália Hugo Pratt alterou ou eliminou muitos dos textos, dos layouts e dos desenhos originais.

Fosse quando fosse, e aponto para os inícios da década de 1980, nenhuma vinheta causou em mim o impacto da vinheta acima. O mérito é de Hugo Pratt, claro, mas, chegados a este ponto, tenho de retomar o fio à meada. Depois de uma longa colaboração na revista Misterix, na série do Oeste, "Sgt. Kirk", ao fundarem os irmãos Oesterheld a Editorial Frontera, Héctor chama Pratt a fim deste ser um dos desenhadores principais da editora. A colaboração entre os dois vai começar com a série que tem por cenário a América do Norte no século XVIII, "Ticonderoga" (Frontera [mensual] #1, Abril de 1957) para continuar com a série de guerra, "Ernie Pike" (Hora Cero [mensual] #1, Maio de 1957) para, finalmente, reatarem "Sgt. Kirk" (Hora Cero Suplemento Semanal #37, 14 de Maio de 1958). Se mal não recordo, no início dos anos de 1960 a tipografia Emilio Ramírez imprimia a edição legítima e uma edição pirata das revistas Frontera. Como a segunda fazia concorrência à primeira os irmãos Oesterheld começaram a sentir dificuldades financeiras. Foi então que venderam material desenhado por Hugo Pratt sem lhe darem royalties (e não sei se lhe eram contratualmente devidos ou não). Seja como for, furioso, Pratt apropriou-se de muitas das pranchas em que tinha colaborado, legalmente propriedade da Editora, material esse que publicou na Europa como sendo exclusivamente de sua autoria, caso do livro acima.

De Hugo Pratt.admirava, na altura, Corto Maltese e dois livros da série Un'uomo un'avventura que li na edição espanhola da colecção Super-Totem, da sugestivamente baptizada Editorial Nueva Frontera, com os títulos Al Oeste del Eden (1979 [L'uomo della Somalia, Fevereiro de 1979]) e Jesuita Joe (1980 [L'uomo del Grande Nord, Junho de 1980]). Como a toda a gente, suponho, o que me atraía em tudo isto era, e correndo o risco de generalizar, a diferença entre o trabalho de Hugo Pratt e o que, dentro do género, a indústria da banda desenhada, quer se originasse no eixo franco-belga, quer do outro lado do Atlântico Norte, tinha para oferecer. Refiro-me, concretamente, ao proverbial maniqueísmo populado por "heróis" de uma dimensão só, ou sem dimensão nenhuma. Se juntarmos o que, desde Edward Said, chamamos orientalismo, mas que, neste caso, vou apelidar de exotismo, encontramos um caldo romântico perfeito e uma receita que tinha tudo para dar certo. Com uma visão comercial notável, Hugo Pratt, fazendo juz à letra "H" que juntou ao seu nome, espanholizando-o, aproveitou-se de, como disse acima, a aldeia global ser ainda demasiado grande para que o público leitor na Europa tivesse qualquer tipo de contacto com a produção argentina. Foi assim que, a partir de meados da década de 1960, na Itália, com a revista Sgt. Kirk e, depois, em França, na revista Pif Gadjet, a pouca visibilidade do terceiro mundo jogou a seu favor catapultando-o para a fama no primeiro. É, portanto, mais do que apropriado, que em muitas das suas histórias perpasse uma certa nostalgia, edulcorante, necessariamente (sempre se trata de entretenimento), do passado colonial inglês...
 

Hora Cero [mensual] #1, Maio de 1957
É de notar: "Guion : Oesterheld" e "Dibujo . Pratt".

Não sei quando me apercebi de que Ernie Pike tinha sido escrito por Héctor Germán Oesterheld. Fosse quando fosse, a revelação foi das mais importantes, senão a mais importante, da minha vida de leitor de banda desenhada. Isto porque me permitiu conhecer a obra genuina para a poder comparar com o sucedâneo. Por outro lado levou-me a uma demanda de tudo quanto tivesse sido publicado por Oesterheld a ponto de ter reunido quase tudo o que se publicou na Editorial Frontera e quase tudo o que de "Sgt. Kirk" se publicou na revista Misterix e muito de "Mort Cinder", façanha quase impossível de realizar nos tempos que correm. Por outro lado iniciei neste blogue uma campanha de reabilitação do nome de Oesterheld. Espero que cada vez aconteça menos, mas a consequência mais nefasta das acções ilegais e imorais de Hugo Pratt, descritas acima, foi que muitos críticos europeus, por cumplicidade, ignorância, ou adoração cega da vaca sagrada, apagaram Oesterheld da equação ou, na melhor das hipóteses, minimizaram a sua acção, reduzindo-o a um mero sidekick do grande homem. 

Do que escrevi sobre o guionista na Internet há este texto, no blogue The Hooded Utilitarianinúmeras referências neste. Em papel pouco escrevi que se possa consultar. Apenas há a reportar um texto, embora de fundo, de que reproduzo, abaixo, a primeira página (sem legenda, porque os dados bibliográficos estão visíveis na imagem):


Num projecto que, muito provavelmente, já não vou realizar, pensava comparar as obras da dupla Oesterheld / Pratt com a obra de Pratt a solo a fim de perceber as semelhanças. Por exemplo: o supracitado álbum L'uomo del Grande Nord foi claramente "inspirado" no pequeno conto "Lobo Conrad", publicado na revista Hora Cero Suplemento Semanal #22 de 29 de Janeiro de 1958 (e reeditado em Sgt. Kirk #1, de Julho de 1967, com a indicação "LUPO CONRAD di Hugo Pratt" e um copyright fictício: "editrice sergente Kirk"). O fuzilamento de Slütter na Ballata del mare salato (Sgt. Kirk #19, Janeiro de 1969) é decalcado da história "El fusilamiento" (Hora Cero Extra! #2, Junho de 1958), história desenhada por Pratt e escrita, não por Héctor, mas por Jorge Oesterheld (ou, em alternativa, mas ainda mais provável, na sequência do fuzilamento de um soldado alemão na história de Héctor, desta vez, "El centinela", Hora Cero Suplemento Semanal #20, 15 de Janeiro de 1958). Na entrevista feita a Oesterheld por Carlos Trillo e Guillermo Saccomanno, os mesmos também encontram um plágio evidente entre um episódio de "Corto Maltese" e uma história de "Sgt. Kirk", só que não quero maçar com mais pormenores... mas... ahem... Pif et son Gadjet nº 82...
Noutro projecto, que ainda conto escrever, penso reflectir sobre esta história; verdadeira obcessão minha uma vez que a considero uma obra-prima da história da banda desenhada ao nível da escrita... que foi, infelizmente, sofrivelmente desenhada. Como case study espero que dê conclusões interessantes.

Toda esta trapalhada demonstra faltas graves no carácter de Hugo Pratt, mas não lhe belisca o talento de desenhador, sobretudo na sua capacidade para dar vida aos seus actores de papel através das expressões faciais e da linguagem corporal. Os dotes de argumentista é que já são mais discutíveis. Acho que, pelas razões expostas acima, a bitola estava tão baixa que lhe bastou copiar o estilo poético e dramático de Oesterheld (somando-lhe, ou diminuindo-lhe, um certo tom blasé, longe da profundidade humana de HGO), adicionar personagens femininas interessantes e exotismo qb para ter o êxito que todos sabemos. 

Termino com o seguinte: Hugo Pratt serviu-se de conhecidos, namoradas e amigos para modelos;  Oesterheld não foi excepção, como se comprova na imagem a encimar este post. Em baixo podemos ver parte da arte original da história em que o foi pela primeira vez: 


 

"Sucedió en Tucson", Super Misterix #428, 17 de Janeiro de 1957 (arte original da minha colecção)

PS Tenho tendência a privilegiar a arte séria em detrimento do humor, mas, ainda assim, aproveito a coincidência de que este post toca o assunto da banda desenhada argentina para deixar uma pequena nota de homenagem a Joaquin Salvador Lavado, mais conhecido no planeta Terra pelo nome artístico de Quino. Mafaldita, quien puede olvidarla?...

9 comments:

  1. finalmente oiço alguém "falar" na Op... um dia escreve o que era ess aloja, parece-me importante para a importação de BD estrangeira, não?
    abraços
    M

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  2. )))"Ao ser assinante da revista "Tintin", aí sim, em 1976, ainda me lembro da polémica que houve entre os leitores a propósito do preto e branco e do estilo de desenho de Pratt"
    -- Também me lembro da polémica (e da indescritível decepção que foi para mim a série depois de ter andado anos a ouvir as maravilhas que dela cantava o Vasco Granja), mas não envolveu o aspecto do preto e branco, pois os primeiros episódios publicados no Tintin estavam coloridos.
    )))"Não sei quando me apercebi de que Ernie Pike tinha sido escrito por Héctor Germán Oesterheld"
    -- Deve ter sido na longa "última entrevista com o grande argumentista sul-americano", publicada no "Tintin" a partir do número 12 do 14º ano, de 1 de Agosto de 1981.

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  3. Essa entrevista é a tradução da do Carlos Trilo e do Guillermo Saccomanno de que falo no post. Vasco Granja não tinha opiniões, só traduzia textos das revistas que importava do estrangeiro. O Roussado Pinto também tinha acesso à Cartoonist Profiles, mas esse, como sabes, inventava e opinava muito. Em 1981 já estava em Lisboa a frequentar a ESBAL e, se bem que não completamente, tinha deixado a banda desenhada para trás. Li a entrevista muitíssimo mais tarde, quando calhou comprar uma daquela colecções encadernadas. Não sei é quando é que isso foi...

    O que dizes sobre "Corto Maltese" é curioso. Também pode ter acontecido que adolescentes habituados a coisas mais convencionais tenham rejeitado a série. Tudo é possível...

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  4. Marcos: não sei nada sobre a Op, a não ser que fui cliente ocasional. Acho que foi lá que comprei um fanzine do Vasco Granja (Quadradinhos ou algo assim; era o nº 3) e fiquei com a ideia, se calhar errada, de que havia alguma relação com o dito cujo. Também lá comprei um livro de David Hockney (desenhos que fez numa viagem à China), portanto, não era só banda desenhada. Por falar em livrarias, não sei se quem gosta de banda desenhada sabe isto, mas a livraria da Cinemateca, a Linha de Sombra, tem coisas bem interessantes. Poucas, é certo, mas interessantes.

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  5. E também não quero deixar passar a ocasião sem referir a Tinta Nos Nervos, mas acho que já vai sendo conhecida. Ou não?...

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  6. Eu bem gostava de ler, ter, o Kirk original tal como foi publicado nas revistas argentinas e as poucas pranchas coloridas que conheço deixam-me perfeitamente seduzido.
    E tendo em atenção a sua opinião, bem gostaria de conhecer "Amapola negra". Há alguma hipótese de chegar a esta série que julgo não ser muito extensa.
    João Salvador Marques

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  7. João: A maior parte das páginas da série "Sgt Kirk" são a preto e branco, mas as relativamente poucas que são coloridas (por Stefan Strocen) são realmente magníficas. Acho "Ernie Pike" superior a "Sgt. Kirk", o problema é que também não há uma edição de "Ernie Pike" que faça justiça à maneira como foi publicada pela primeira vez. As aguadas deasapareceram, por exemplo e, pior, a última reedição é a cores. Já disse a Dominique Petitfaux que não comprava tal aberração.
    Quanto à "Amapola", é impossível de encontrar.

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  8. A Op chama-se antes Mundo da BD e era dirigida por uma mulher, chamada Paula Ferreira, que fez uma revista / zine "punk" LEit Motiv, existiu entre 77 e 87...
    https://vimeo.com/75151697
    abraços
    M

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