Aqueles que têm a minha idade, ou cuja idade se aproxime da minha, lembram-se de como "banda desenhada" (um francesismo, já a demonstrar, só por si, alguma coisa) ou, melhor ainda, "BD" (acrónimo que, na esteira de Edmond Baudoin, me recuso a utilizar) era quase sinónimo, em Portugal, de banda desenhada comercial franco-belga. Repito o que já escrevi num destes posts: toda a banda desenhada é comercial, mas, tal como um aforismo célebre sublinha, se todos são iguais, uns são mais iguais do que outros e, portanto, se todas as banda desenhadas são comerciais, há bandas desenhadas bem mais comerciais do que outras. A estas outras costumam aplicar-se designações várias e foi por isso que, desta vez, tive alguma dificuldade em escolher o título deste post número doze. Na realidade nenhuma das escolhas me agrada: "alternative comics" ["banda desenhada alternativa"], expressão utilizada nos EUA, desagrada-me porque põe demasiado o foco naquilo a que se reage, ou seja, no mainstream (é uma definição pela negativa, algo do género: somos o que não somos); "bande dessinée d'art et d'essais" ["banda desenhada de arte e ensaio"], en français, é um pretenciosismo óbvio, expressão rebuscada e esteticamente feia; "bande dessinée d'auteur" ["banda desenhada de autor"] é uma expressão demasiado vaga porque nada impede um artista ou argumentista a produzir obra comercial pura e dura de ter traços identificativos de um estilo, mesmo que entremeados por clichés típicos de determinados géneros como o maniqueísmo da aventura infanto-juvenil. Apesar da ressalva decidi-me pela última expressão porque me parece a que põe o acento tónico onde este deve estar: na individualidade e independência de certos criadores e casas editoras face à indústria cultural.
Voltando ao princípio: se recuarmos umas décadas encontramos João Paiva Boléo, no jornal Expresso, e Carlos Pessoa, no jornal Público, para quem Lucky Luke, Astérix e o inevitável Tintin eram quase tudo o que, com origem nos nortes europeus, merecia ser divulgado. Como se não bastasse, no "quase" acima só cabia o que as fábricas de bestsellers em França e na Bélgica iam debitando no mercado.
Nestas "Memórias de Um Desmemoriado" estou, mais uma vez, à mercê da dedução porque, claro, não me lembro de todo de como consegui ultrapassar a propaganda monopolista da comunicação social, leia-se, jornais, porque, para o resto, leia-se, televisão, a banda desenhada não existe. Apenas tenho, para me ajudar, dois indícios muito ténues e um palpite: um texto no fanzine Nemo, de que se reproduz em baixo o início, e uma conversa com Lewis Trondheim no Salão de Banda Desenhada do Porto de 1997 em que lhe disse que enviei mil francos... mas não sei para onde... Suponho que para L'Association, mas isso não explica os livros adquiridos nas outras editoras: a Ego Comme X, a Amok e a Fréon. Quanto ao palpite: só posso ter entrado em contacto com a banda desenhada franco-belga de qualidade na Internet.
Edmond Baudoin foi um pioneiro da [banda desenhada] autobiográfica em França, mas, ao contrário dos seus "colegas" norte-americanos, Justin Green e Robert Crumb, sempre se retratou (com grande atenção aos membros da sua própria família - a começar pelo avô em Couma Acò) de forma séria e sensível. Autor de traço fluido, representando sinteticamente o seu mundo através de texturas marcadas e linhas espessas (como o sangue, apetece dizer), Baudoin "desorganiza" as suas histórias dando-nos, assim, uma sensação desconexa dos acontecimentos, próxima da vida vivida. O único senão na obra de Baudoin (o qual pode estragar completamente um álbum, como acontece em Le Voyage) é algum excesso de lirismo delicodoce.
Sobre Edmond Baudoin escrevi neste blogue e na revista The Comics Journal conforme se pode ver em baixo:
The Comics Journal #249, Dezembro de 2002
Digno de nota é também Aristophane Boulon cuja obra Les soeurs Zabîme (a capa encima este post) comparei a Marcel Proust (incluo também a proverbial coda). Sobre Aristophane escrevi também aqui. Fui ainda o elo de ligação entre as editoras Ego Comme X e First Second que, com tradução de Matt Madden, publicou Les soeurs Zabîme nos Estados Unidos.
Muitos outros artistas poderia citar. Há, por exemplo, um trio de livros autobiográficos que me é caro: Approximativement de Lewis Trondheim, cuja capa se pode ver em baixo, Livret de phamille de Jean-Christophe Menu e Journal d'un album de Philippe Dupuy e Charles Berberian (Philippe Dupuy é, publicado mais tarde, em Maio de 2005, por uma casa editora que também merece citação, as Éditions Cornélius o autor do excelente Hanté).
Lewis Trondheim (pseudónimo de Laurent Chabosy), Approximativement, Novembro de 1995
Ainda no campo da autobiografia o nome que se destaca é o de Fabrice Neaud, sobre quem escrevi um texto que considero importante no fanzine Nemo (reproduz-se em baixo a primeira página).
Este post já vai bem longo e ainda não referi Yvan Alagbé, co-editor da Amok, e todos os artistas que publicaram na editora Fréon: Thierry van Hasselt, Dominique Goblet, Vincent Fortemps, Éric Lambé e Olivier Deprez. Fica para a próxima, mas, para já, termino com as capas das antologias emblemáticas das quatro casas editoras: Ego Comme X, L'Association (com as revistas Labo, onde tudo começou, e Lapin), Fréon e Amok:
Ego Comme X: Ego comme x #1, [Janeiro de 1994]
Hay que ser muy tonto para haber publicado la viñeta de "Les soeurs Zabîme" invertida! Por otro lado, no se debía ahora corregir el error, pues se trata de un documento histórico de máxima importancia.
ReplyDeleteEstimado Leónidas: perdon por contestar en portugués: como disse no post, o erro foi corrigido digitalmente. No papel está tudo igual. Um documento histórico é um documento histórico!...
ReplyDeleteO João Paiva Boléo não escrevia apenas sobre o que estava nas prateleiras. Na verdade, o pouco que ia sendo editado em Portugal era até sistematicamente ignorado em favor de edições estrangeiras (franco-belgas) que dificilmente poderiam chegar às mãos dos leitores, dados os preços proibitivos que a Destarte praticava, a falta de poder económico da maioria dos leitores e a falta de de informação de qualidade na imprensa. Como tal, nunca percebi o que andava o dito «crítico» a fazer no Expresso. Contudo, não há dúvida de que o decréscimo de qualidade em relação a Paulo Pereira foi evidente. Ainda assim, e se a memória não me atraiçoa (já me livrei desses recortes de jornal há bem mais de uma década) foi pela pena de João Paiva Boléo que tive conhecimento da existência de Baudoin. Mas também me recordo de que as suas sugestões para as leituras de Verão eram uma parada de horrores capazes de chocar até um ignorante como eu.
ReplyDeleteA minha primeira verdadeira abertura de horizontes deu-se com a requisição do catálogo da exposição «A Arquitectura na Banda Desenhada», da Gulbenkian, na biblioteca municipal de Coimbra.
A segunda deu-se com a descoberta do programa de João Miguel Lameiras e João Ramalho Santos na Rádio Universidade de Coimbra. Achei estranho o quão curto era o tempo de antena dedicado à BD europeia que ia aparecendo nas livrarias. Só então percebi que a BD americana não era apenas super-heróis e que os quiosques eram um circuito de distribuição que eu nunca deveria ter ignorado. Por outro lado, o técnico do programa, Amândio Duarte, que na altura trabalhava na Livraria Finisterra, teve a sensibilidade (além da paciência, disponibilidade, simpatia e uma excelente rede de contactos) para perceber que aquele chato que ia lá regularmente, mas raramente comprava livros, procurava na verdade algo de diferente. Foi ele que me pôs na mão o primeiro exemplar do Quadrado, e convenceu-mo a comprá-lo com a absoluta convicção de que aquele seria o meu ponto de partida.
Obrigado pelo testemunho, Daniel! As nossas experiências são pessoais e intransmissíveis e essas são as suas.
ReplyDeleteNa verdade, como escrevi num dos primeiros posts desta série, fiquei a dever a João Paiva Boléo ter conhecido Manuel Caldas. Acho que ele é bem capaz de ter sido o responsável indirecto pela minha carreira de crítico. Fica aqui uma lista dos textos de J.P. Boléo sobre banda desenhada franco-belga entre 1989 e meados de 1993 (devia avançar pelo menos até 1997 para corresponder à time frame do post, e talvez o faça, mas, de momento é o que tenho): Hergé, 60 Anos (7/1/89), Hergé (16/6/89), Astérix (20/10/89), E. P. Jacobs (22/9/90), Brüsel (7/8/93). Como se vê, não foge ao infanto-juvenil franco-belga e tudo isto se podia encontrar facilmente em edições portuguesas.
Creio que os exemplos que deu são artigos na Revista e tenho memória deles (e de mais alguns, incluindo um sobre banda desenhada japonesa, que foi a primeira coisa que li sobre o assunto).
ReplyDeleteMas acho que me fiz entender mal. Concordo que a divulgação de João Paiva Boléo era quase sempre de banda desenhada comercial (e às vezes era mesmo da mais rasteira). O que afirmei em relação ao que ele escrevia sobre a banda desenhada estrangeira era uma ironia. As edições estrangeiras que divulgava eram, regra geral, tão fraquinhas como as portuguesas. Como tal, não havia qualquer motivo lógico para o fazer. E tenho em conta que raramente escrevia, a opção por edições que só meia dúzia de pessoas conhecia era, no mínimo, insólita. Pouco li o Público, mas pareceu-me que o Carlos Pessoa, cujos gostos seguiam a mesma veia, pelo menos tinha um plano de trabalho.
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