John Porcellino, King-Cat Comics & Stories #38, Março de 1993
Esta série de posts devia ter como subtítulo "Memórias de um Desmemoriado". Isto porque, hoje, não faço ideia de como me foi parar às mãos, em 1995 ou 1996, suponho, um obscuro mini-comic, fanzine, se diz por aqui, editado em Denver, Colorado, nos Estados Unidos da América. Devo, talvez, ter lido a entrevista ao autor, John Porcellino, no prozine Destroy All Comics #3, de Agosto de 1995, cuja capa se pode ver abaixo. Daí a enviar para Denver, por snail mail, uns quantos dólares num envelope, devidamente acomodados em papel químico, note-.se, nesses tempos, antes do home banking e de outras modernices do género como o Paypal, foi um pequeno passo. O que é curioso é que, hoje, o papel químico é já uma memória longínqua. Acrescento ainda que a alternativa a este processo expedito era entupir a sucursal bancária com transferências que levavam uma eternidade a finalizar. A revista, essa, devo tê-la adquirido através da livraria Linhares, ali para os lados da Praça da Alegria onde tinha inúmeros standing orders escolhidos, junto com obras avulso, nos catálogos Advance Comics, cujo CEO, John Davis, conheci em Nova Iorque, e Previews. O encontro com John Davis deu-se uns meros meses antes da sua distribuidora, a Capital ter sido adquirida pela rival, a Diamond de Steve Geppi (editora da Previews).
John Porcellino, Destroy All Comics #3, Agosto de 1995
Mas deixemos os milhões da distribuição para voltar aos tostões da autoedição, mais concretamente ao modesto fanzine King-Cat Comics & Stories de John Porcellino. O que me impressionou imediatamente foi a poesia de certos momentos contemplativos de que se pode ver abaixo um exemplo, retirado de Destroy All Comics:
John Porcellino, "Leaves", King-Cat Comics & Stories #37, Novembro de 1992
King-Cat começou por ser uma série saída do espírito DIY (do it yourself), típico do movimento punk. Ao tentar recuperar, com alguns anos de atraso, todos os números que pude (não podia saber que só foram impressos dezassete exemplares do #1) só consegui chegar ao número 27, a um par na dezena de 30 e a quase todos daí em diante para estar, agora, a algumas semanas de receber o #80. Ainda assim há, sobretudo no #27, com Racky Racoon a destruir or discos de Whitney Houston, um desenho deskilled em extremo e uma anarquia que desapareceria com o tempo para ser substituída por uma expressão gráfica simplificada, sim, mas de onde se desprende uma poesia zen em haikus delicados de fina melancolia.
John Porcellino, King-Cat Comix & Stories #27, Junho de 1991
Racky Racoon destroi os discos de Whitney Houston.
Sobre John Porcellino só escrevi este post. Pena que já não tenha o link para os resultados do projecto de Komar & Melamid que refiro nos comentários, mas podem encontrar-se referências aqui. A depuração do estilo gráfico de John Porcellino, com a adição raríssima e feliz da cor, neste caso, pode ver-se na imagem abaixo:
John Porcellino, King-Cat Comics, Setembro de 1998
Capa de uma antologia da obra de John Porcellino publicada pela editora alemã Reprodukt.
Fiz duas comissions a John Porcellino que podem ver-se, em baixo. Lamento agora não me ter lembrado da prancha "Leaves", mas são tantas as hipóteses de escolha que me foi difícil seleccionar duas:
Esquerda: "13 Stars", King-Cat Comics & Stories #38, Março de 1993
Direita: "Pingree Grove", King-Cat Comics & Stories #62, Agosto de 2003.
Perfect Example é uma recolha de episódios pré-publicados em King-Cat Comics & Stories. Relata, em género autobiográfico e com a sensibilidade que se reconhece a John Porcellino, acontecimentos da transição entre o fim da juventude e a idade adulta, já com um pé na universidade. Conforme se pode ver abaixo, a narração interior, o drama psicológico, em suma, a depressão resultante de frustrações sentimentais, magistralmente expressas, estão no centro do livro o qual, a meu ver, termina numa nota positiva, upbeat, que destoa do que ficou para trás...
John Porcellino: vinheta promocional por parte da editora Highwater Books do livro Perfect Example cuja capa se reproduz abaixo:
Raramente me emocionei ao ler um livro de banda desenhada, mas isso foi o que me aconteceu no dia em que li o mini-comic King-Cat Comics & Stories #38 (cuja capa encima este post), mais propriamente ao ler a história "Sam". Testemunho de que assim foi é o texto que escrevi uns anos mais tarde, suponho, nesta cronologia muito incerta, e que reproduzo abaixo (foi publicado na mailing list comix@ no dia 23 de Junho de 1998). Alguém disse, a propósito do meu texto, que as histórias de John Porcellino são tão poéticas que até uma crítica sobre o tema pode ser contaminada pelo espírito que este lhes incute (palavras minhas, mas a ideia, se não recordo mal, era mais ou menos esta). Algo de verdade pode haver nisto, mas isso não me impediu de achar as palavras injustas. Ao fim e ao cabo uma crítica pouco mais pode ser do que algo muito paralelo à obra. Pouco mais pode ser ser do que um longínquo eco, do que um pálido reflexo. Dada esta independência entre duas realidades distintas qualquer virtude ou defeito do texto crítico só pode ser imputado ou imputada a quem escreveu e a mais ninguém:
"Sam" is a story self-published by John Porcellino in the mini-comic King-Cat Comics & Stories No. 38, dated March 1993. Sam is short for Porcellino's she-dog's name, Samantha Love. This story is about what she meant to him through her own life, his childhood, adolescence, young adult's years.
Porcellino's drawing style is what we could call minimalist: the characters are just diagrams and there's almost no backgrounds; shading doesn't exist and the lines have always the same thickness and shaky quality; there's almost no perspective (when it exists it's used with deliberate "mistakes"). King-Cat's outdoor scenes usually show a great composition sense conveying a slow pace for the little characters who wander through the sketchy, but well balanced landscapes. These melancholic panels don't appear in "Sam" though... This is an indoor and intimate story (one panel in page four is the exception). Porcellino's drawings have a roundness that conveys warmness. (Conversely, the troubled adolescent in page five has a saw-like hairdo: a symbol of rebellion as we can see in the character Calvin of Calvin & Hobbes' fame, or Bart Simpson of The Simpsons' fame.)
The characters are shown mostly as talking heads. The most elaborate compositions in the story are those in which Sam appears (Sam's the star of the show, after all). Porcellino uses an eight panel grid, the same one once used by Dell in their children's comics. This transports Western readers directly to the past, but, at the same time, gives us a regular pace (most panels have an equal, if shaky, shape) which, like the regular beat of a clock, goes on and on unto the inevitable conclusion of us all, living beings: death.
John Porcellino's writing is as simple and straightforward as his drawing style. The lettering combines capital letters and small letters in a bad-good way that, again, is in accordance with the drawings being also typical of punk aesthetics.
All through "Sam" we can see how John's love for his pet grows. During his difficult adolescent years Sam was always there for him. In the end we can understand his sorrow when she dies. A particularly deep panel is the one in which his friend of many years turns her back on him: Sam's there but, at the same time, she's not there anymore. Soon she will die of old age and old animals (the same way as old people) bid their farewells to this world way before their loved ones bid farewell to them.
One of Porcellino's poetical one pagers, 13 Stars, is an epilogue to "Sam." In it she appears as a ghost: the ghost of memory, the ghost of lost love and all lost things. So are all true works of art: ghosts that haunt us in a disturbing way. I, for one, found that reading this story was a truly haunting and marvelous experience. "Sam" is so simple and sad, and, yet, so beautiful...