Mundo de Aventuras Nº 30 V Série [segunda série], 25 de Abril de 1974
Deveria talvez começar este post de outra forma, com uma imagem diferente a encimá-lo, por uma ponta diferente do novelo, mas a tentação foi mais forte. Se fosse necessário, e estou certo de que não é, chamaria a atenção de quem lê para a data na capa da publicação acima: 25 de Abril de 1974.
Nesse dia os portugueses tinham, certamente, preocupações bem distantes do consumo de banda desenhada. Esse tempo foi, para os que tinham acordo de si na altura, o da tomada de consciência de que tudo iria mudar. Felizmente a terra, para aludir ao título em epígrafe, durante o ano e meio conturbado que se seguiu, não foi tão selvagem como podia ter sido (e algumas mortes, mesmo assim, há a lamentar, mesmo para além do tal Verão Quente).
Leitor assíduo da revista Mundo de Aventuras a personagem Matt Marriott não me era estranha. Nestes meados da década de 1970, no entanto, sob a batuta de Vitoriano Rosa, e agradeço a Jorge Magalhães o seu comentário esclarecedor neste mesmo blogue, a revista sofreu uma lavagem de cara radical. Passou de uma publicação em que se podem encontrar todas as modalidades possíveis de desrespeito pelo material publicado a uma revista, pelo menos, normal...
A série inglesa dos jornais, "Matt Marriott", publicada mais exactamente no jornal The Evening News, de Londres, entre 1955 e 1977, escrita por James Edgar e desenhada por Tony Weare, atraiu-me desde o princípio pelo desenho muito próprio, aparentemente descuidado do desenhador. A este propósito pode ver-se em baixo uma prancha de outro artista inglês que sempre admirei pela mesma razão. Trata-se de um estilo que, tal como o de Arturo del Castillo, que vimos no post anterior, muito deve às técnicas de xilogravura de topo, comuns nos jornais e revistas do virar dos séculos XIX e XX. A diferença dos ingleses para o chileno é que estes tinham um estilo muito mais solto. Foi precisamente este contraste entre precisão e dinamismo que me atraiu e me atrai ainda (posso também citar o estilo de outro natural das Ilhas Britânicas, Eddie Campbell).
O Western, ou género do Oeste, muito em voga na cultura de massas entre as décadas de 1940 e 1960 (com a década seguinte ainda vigente, mas a decair), ao mesmo tempo que vendeu muito foi extremamente maltratado na banda desenhada. Para se fazer uma ideia de como foi popular, as revistas de banda desenhada baratas eram conhecidas genericamente, em Portugal, por "livros de cobóis". Mas digo "maltratado" porque o género, tal como o dos super-heróis, aliás, prestava-se às mil maravilhas ao maniqueísmo do macho alfa que tudo resolve, contra tudo e contra todos, na luta do bem contra o mal. Talvez seja por isso que Matt Marriott, ao apresentar personagens e situações complexas, se destaca, com a ressalva de uma ou outra excepção, de entre todos os outros Westerns da banda desenhada.
Um dos primeiros a reconhecer e a explanar essa diferença no papel, preto no branco, foi José de Matos-Cruz. Cito um excerto de um dos seus textos (Antologia da BD Clássica nº 20, 1988. pág. 2):
Existe em Matt Marriott desde logo, uma densidade dramática jamais superada, neste género de histórias. Notável ao nível da progressão, na breve incidência das peripécias patéticas, na caracterização contraditória e humana das várias personagens. Quer tomando a série no conjunto, onde deparamos uma penetrante toada odisseica; quer apreciando um simples episódio, com toda a sucessão e carga de conflitos que se agudizam, até uma inevitabilidade trágica, sentimo-nos embargados pela opressão e cruel determinismo que ronda todos os participantes em cada aventura.
Pela minha parte escrevi introduções para um par de reedições recentes de Manuel Caldas, vários textos na Internet, neste blogue inclusive e um artigo de fundo, de que se pode ver abaixo a primeira página:
ReplyDeleteComo as sensibilidades são diferentes! Aos meus 13 anos, em Janeiro de 1973, o "Jornal do Cuto" começou a publicar um episódio de "Matt Marriott e, como lia a revista inteira, tive com grande esforço de vencer a repugnância que me provocavam os desenhos "tão sombrios e toscos" e pôr-me a seguir a história. E no fim fiquei com a intensa certeza de que nunca tinha lido nada semelhante! Nunca mais perdi um episódio de "Matt Marriott". E também sempre os reli, mais do que uma vez.
Por seu lado, também, com prazer diferente (não digo maior nem menor, mas apenas diferente, porque obras diferentes provocam sensações diferentes) li o "Blueberry". Entre este e "Matt Marriott", para umas férias numa ilha deserta escolheria preferiria, sem hesitação, o cowboy do Tony Weare, mas o soldado de Giraud e Charlier tem uma escrita excelente e muito superior à das histórias infantis padronizadas.
Essa de não gostares do desenho de Tony Weare não te perdoo, Manel. Quanto ao resto, tens razão. O comentário foi escrito numa altura de intensa militância em que senti a necessidade de intensificar dicotomias. Necessitaria de uma nuance que não teve e não é agora que vai ter. Acho que foi no Nemo que comparei o Blueberry aos spaghetti westerns. Mantenho essa opinião. Bem feito, com argumentos engenhosos (mas algo infantilóides, digo) e excelentes desenhos, mas mais nada. Também é verdade que para muitos isso já é muito e para outros é, simplesmente, tudo, mas é como dizes: sensibilidades diferentes. Ao contrário do que toda a gente pensou nunca achei que estivesse a discutir gostos. O que sempre discuti foi o cânone, mais nada. Mas como o desgraçado está pelas ruas da amargura, é melhor deixar-lhe o cadáver em paz.
ReplyDeleteAh e esse episódio do Jornal do Cuto é, simplesmente, brilhante. Para quem o quiser ler, aconselha-se a compra do livro "Pueblo Minero".
ReplyDelete"Essa de não gostares do desenho de Tony Weare não te perdoo"
ReplyDeleteNão gostava naquela altura, não tanto por ser um miúdo mas porque os desenhos estavam mal reproduzidos e a revista muito deficientemente impressa.
O tom dessa frase não é propriamente lá muito sério.
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