Sobrinhos do Capitão!, 1964
Não prometo, no entanto, grande veracidade no que se segue. Nenhuma madalena de Proust virá em meu auxílio embora, em vez da dita, algumas vinhetas, à maneira das vinhetas memoráveis da, apesar de tudo, memorável revista les Cahiers de la Bande Dessinée, também possam fazer por aqui a sua aparição fantasmática.
Toda a ficção é autobiografia e toda a autobiografia é ficção. Quanto mais não seja porque as memórias são sempre memórias falsas. Nunca aconteceu assim ou nunca aconteceu bem assim...
O que me lembro é de ter um problema de saúde potencialmente muito grave que, segundo a pediatra, me poderia colocar numa cadeira de rodas para o resto da vida. Tinha falta de apetite e, como o meu pai era leitor assíduo do defunto jornal O Século, bastava ele pôr-me o suplemento "Pim Pam Pum" debaixo dos olhos para eu me perder nos mundos impressos, tão mais interessantes do que os outros. Era assim que me distraía enquanto me ía alimentando.
Tivesse este fait-divers pessoal acontecido só que fosse uma geração depois e os meios de imersão estariam, de certeza, ligados à corrente eléctrica. Mas, naquele início de década de 1960, o século XX tinha a idade que eu tenho agora e a magia era trazida por pontinhos de cor e manchas de preto sobre papel barato de jornal. Fazendo psicanálise tão barata como o tal papel diria que é dessas origens longínquas que me vem o fetichismo pelos pontinhos Ben Day e pelas cores pastel a contrastar com cores primárias sobre papel bege. Idem pelos registos desalinhados e demais erros. Neste tempo de reimpressões, em que se tenta recuperar e preservar o efémero, não aceito que se "melhore" seja o que for, salvo raras excepções, porque isso é falsear o que foi.
Os Silvas ou The Gambols, 1963
No jornal O Século também me interessava a banda desenhada que era publicada durante a semana. Lembro-me apenas de "Os Silvas" que, obviamente, na altura não sabia tratar-se da comédia pequeno burguesa "The Gambols" por Barry Appleby e de "Luís, o Traquinas", série igualmente pequeno burguesa e suburbana, que também não sabia tratar-se de "Dennis, the Menace" de Hank Ketcham. Recortava essas vinhetas com todo o cuidado o que muito me ajudou a desenvolver a motricidade fina. Nada disto resta em meu poder, por isso, o recorte abaixo foi recolhido na Internet. De notar, apenas como curiosidade histórica: era a censura que obrigava a aportuguesar os nomes originais.
Dennis the Menace, Hank Ketcham
Nesta visita às origens há um episódio que não asseguro por nada ter acontecido, mas o meu cérebro jura que sim, por isso, aqui vai ele:
Teria uns quatro ou cinco anos e estava na rua a acompanhar o meu pai enquanto olhava para um livro de banda desenhada (penso que seria um livro dos Sobrinhos do Capitão -The Katzenjammer Kids). É então que um transeunte me interpela e me pergunta se sabia ler. Suponho que a resposta terá sido negativa seguida de "...mas vejo os bonecos". Quase seis décadas depois, embora com igual gosto pelas palavras, é exactamente isso que continuo a fazer.
Mas qu'intressante! As minhas memórias mais antigas da banda desenhada levam-me também para o "Pim-Pam-Pum". Pelos meus 5-6 anos, lá por 1965, o meu pai comprava "O Século" por causa do concurso "Lendas de Portugal" e eu reparei no suplemento das quintas-feiras e comecei a guardá-lo. Pouco depois ofereci-os ao meu irmão mais velho, que então vivia longe, na casa de umas tias, e nunca mais os vi. Às vezes penso que deveria ir à Biblioteca Pública do Porto para consultar os jornais da época e ver que história do "Pim-Pam-Pum" era aquela em que aparecia uma figura grotesca que em vez de segurar as calças com uma alça que desse a volta sobre o ombro a segurava com os dentes.
ReplyDeleteSerá mesmo falsa a memória que tenho?