Sunday, July 29, 2018

A alma é o negócio em que se perde sempre


João Bénard da Costa em imagem que ilustra a entrevista de 1990. Se ele cá voltasse!...

Por um acaso feliz deparei com esta entrevista de Manuel S. Fonseca a João Bénard da Costa (originalmente publicada n'"a revista" do jornal Expresso de 1 de Dezembro de 1990). Já o escrevi neste blogue, João Bénard da Costa foi o meu mestre. Foi na Cinemateca que aprendi a ver cinema: primeiro ainda no Palácio Foz, depois na rua Barata Salgueiro, antes e depois do incêndio; guardo ainda o meu primeiro bilhete de "antes do fogo" (fui ver um filme de David Wark Griffith, não sei qual, o bilhete, sobre isso, nada indica, no dia 5 de Novembro de 1980 às 18.00 horas). João Bénard da Costa foi um crítico muito influênciado pelos Cahiers du Cinéma, revista cuja matriz crítica se pode encontrar neste texto de François Truffaut: contra "une certaine forme de cinéma du seul point de vue des scénarios et des scénaristes". Contre la littérature dirais-je. É compreensível: muitos já não se lembram (eu próprio não vivi esses tempos, não sou assim tão antigo), mas o cinema viveu as mesmas dores de legitimação que a banda desenhada sofre hoje. Nessas condições socorreu-se da literatura como bengala (a mesma estratégia usou a fotografia ao imitar a pintura). Aquilo a que Truffaut chama "la Tradition de la Qualité" não é mais do que um cinema visto pelo prisma literário. Os Cahiers, pelo contrário, reivindicaram o cinema como arte visual e daí ser o desprezado, na altura, bem entendido, Hitchcock o seu padrinho fundador.
Na verdade, tudo isto me soa demasiado à crítica de banda desenhada que mais abomino para me deixar confortável. Não que deteste Hitchcock, bem pelo contrário, mas Hitchcock está longe de ser, como diria João Bénard da Costa, muito lá de casa (my crib's assiduous visit, diria eu). Ou seja, não posso dizer que os meus gostos cinematográficos coincidam com os de João Bénard da Costa, a não ser quando ambos achamos John Ford, Kenji Mizoguchi, Rossellini e Visconti mestres incontestáveis.
Coincido com João Bénard da Costa em mais algumas coisas, mas não poderei nunca dizer como ele "O cinema não é uma arte narrativa — a história de um filme é o que é menos relevante num filme". Não posso porque acho que nem os Cahiers nem Bénard perceberam algo que a banda desenhada me ensinou: as imagens também são narrativa. E não perceberam porque eram herdeiros de uma tradição essencialista que vai de Lessing ao tardo-modernismo. A literatura não é dona exclusiva da narração e João Bénard da Costa, que amava o cinema mudo, e Stroheim e Murnau e Fritz Lang, tanto como eu, deveria sabê-lo.
Em resumo: o que faz de João Bénard da Costa o meu mestre não é o cinema, é outra coisa muito mais importante: uma atitude perante a vida e a arte em que ética e estética se confundem.
Daí a citação abaixo... Não poderia finalizar melhor esta entrada no meu blogue:
[JBC] Com o aparecimento da cultura de massas deixou de haver uma «aristocracia da cultura». Ao que tem de se saudar do ponto de vista social e político, opõe-se o «reverso da medalha», isto é, uma tirania de gostos ditados por pessoas sem preparação. E tal como há pessoas cegas aos valores morais, há também pessoas cegas aos valores estéticos. São sempre minorias as que não são cegas, nem a uns valores nem aos outros. Esse abastardamento passa, aliás, pela compreensão do ter­mo «cultura». Há uma ideia, que teve em Portugal expressão importante no pintassilguismo, e num teórico como o Eduardo Prado Coelho, segundo a qual, desde um prato bem cozinhado, a um bom quadro, a um livro, tudo é indistintamente cultura. Essa concepção revela já uma grave crise vinda do interior do mundo que vive dessas mesmas referências culturais.
MSF — Outro tópico re­corrente no seu livro é a nos­talgia. Nostalgia de uma visão romântica da criação que faz de cada autor um «génio mal­dito», que vê na estreia de cada filme um escândalo.
JBC — Há dois tipos de nostalgia. Quando falo das sa­las de cinema, de um modo de vida, essa é a componente pes­soal da nostalgia. É como se falar das casas da minha infân­cia, de pessoas que já morre­ram. São circunstâncias irrepetíveis que se evocam. Outro tipo de nostalgia surge quando, ao comparar dois modos de vida, nos perguntamos se existe ou não uma perda. Parece-me evi­dente que existe uma perda e que ela é relevante na discussão dos actores, dos realizadores e da qualidade das suas obras. Muitos deles entraram em cho­que com o gosto dominante e pagaram a factura. Fizeram o tal negócio com a alma, que é o negócio em que se perde sem­pre, como dizia o outro. Era essa a grandeza da arte. Punha-se a alma em jogo e perdia-se, quan­to mais não fosse, o corpo.

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