Thursday, August 20, 2015

Ana Hatherly - Coda

Neste tema com duas variações Ana Hatherly, a poeta-pintora, como alguém a cognomizou, demonstrou mais uma vez que o espaço da página como lugar expressivo e construtivo, no seguimento dos exemplos modernistas pioneiros de Mallarmé e Apollinaire, nunca deixou o seu espírito. É este aspecto da poesia visual, movimento em que foi um dos principais expoentes, que aproxima o trabalho de Ana Hatherly da banda desenhada, arte da palavra escrita e da expressão visual por excelência (sem essencialismos bacocos, evidentemente, antes com laivos barrocos, ou não fosse Ana Hatherly a maior especialista das visualidades escritas barrocas em Portugal). De notar que o "mote", por assim dizer, tem apenas uma tímida nota espacial no final e que as "variações" se abalançam decididamente no caminho experimental (a referência a "Il pleut", de Apollinaire, é clara). É como se Ana Hatherly descrevesse, em microcosmos, um dos caminhos mais ricos da poesia europeia (e não só, quando tudo se tornou global) desde os simbolistas aos poetas visuais e concretos.

O tom elegíaco do poema pretende, evidentemente, ser uma homenagem à memória de Ana Hatherly.



Ana Hatherly, Rilkeana, Assírio e Alvim, 1999.

Thursday, August 6, 2015

Ana Hatherly



Ana Alves aka Ana Hatherly. Photo undated and uncredited.

Another artist in The Crib's pantheon died yesterday: Ana Hatherly. I wrote about her work (which I included in the expanded field of comics) here and here.

Today I just want to post part of Ana Hatherly's introduction to her TV show Obrigatório Não Ver [forbidden to watch] aired October 22, 1978, in Portugal's public TV, RTP [Portuguese Radio and Television]. What Ana Hatherly calls "vanguard art" we call today "contemporary art" (my translation):
Good evening dear viewers: this show is titled Obrigatório Não Ver. Said title, given by Jorge Listopad, who is at the head of the RTP's Department of Cultural Programming, was dubbed by the press as one of the most unfortunate in the current programming.
I would agree with this opinion if this wasn't, as it is, a show about vanguard art. What happens is that this title, deliberately or not, illustrates a more or less generalized attitude of the public towards vanguard art. An attitude that is founded in the ignorance of what is refused and self-indulgently based on the law of the lesser effort, because any knowledge, any new knowledge, demands a will to learn and, above all, persistence and effort.
This effort, in the field of the arts, is particularly real in vanguard art's case because of its excessive nowness. I mean, because the vanguard implies an immediate experience of our time's reality it doesn't allow the less trained the retreat that, for instance, the art of other times permits.
This is just one aspect - because there are others - but it allows us to mention what, in part unintentionally, the title of this show suggests: I mean, that what's nearer is what's more difficult to see, or, in other words, that nothing is more difficult to see than what's constantly in front of us.
Add to that a huge bias and apply the above words to the situation of the art form of comics.  (And I mean "the art form", not "the entertainment industry.")

  



Luís Alves de Matos, Ana Hatherly - The Intelligent Hand (trailer), 2002.

Wednesday, August 5, 2015

Captivant de Chaland Cornillon Por Paulo Pereira - Coda

Elogiei Paulo Pereira no meu último post, mas em texto do mesmo sobre Hergé no Expresso, Revista de 2 de julho de 1988 este demonstra ter o sentido crítico atraiçoado pelo seu tintinofilismo; nada mais mortal para o crítico do que o embotamento provocado pelo fanatismo. Referi que nada tinha a ver com o gosto convencional franco-belga de Paulo Pereira, mas noutros textos sobre Bilal e Moebius / Charlier esse seu gosto não o impediu de referir as fraquezas das obras que analisou. Por isso o admiro. Aqui, não. O sortilégio da obra de Hergé demonstra ser demasiado poderoso. Não encontramos neste texto uma palavra sobre o racismo chocante de Tintin no Congo, álbum apelidado de "clássico". Onde estão agora as referências ao colonialismo da banda desenhada infantil tradicional, tão ligeiramente aplicadas a O Cavaleiro Andante e a O Papagaio? (Neste último caso seria o colonialismo de "Tintin em Angola"?) Não encontramos uma palavra sobre as razões (colaboracionismo) que levaram Hergé a "desaparecer" no lago Leman (como é referido).

Mas este meu novo post tem outro intuito. A verdade é que depois de lamentar a ausência de crítica de banda desenhada no jornal Expresso, por ironia resulta que o Expresso desta semana (revista E de 1 de Agosto de 2015) tem precisamente um texto crítico sobre O Árabe do Futuro de Riad Sattouf (Teorema, 2015). Não tenho grande coisa a comentar sobre o texto de José Mário Silva ("Entre ouro e lama") até porque não li o livro. Mais do que um texto crítico é de uma resenha que se trata. Atente-se, no entanto, no final do texto, citado abaixo, e observe-se a imagem (66).
Se [Riad Sattouf] mantiver a qualidade gráfica (linha clara, pranchas densas), a escrita precisa e o humor cáustico, merecerá sem dúvida a atenção de um círculo de leitores mais vasto do que o habitual público consumidor de banda desenhada.

Desde Töpffer, pelo menos, que há uma grande tradição do uso da caricatura na banda desenhada. Tanto é assim que para muitos banda desenhada e caricatura é quase o mesmo. No já longinquo ano de 2009 escrevi sobre tudo isto e não vou agora repetir-me. Direi apenas que essa ligação é circunstancial e que não importa o estilo em que se desenhe (ou pinte, ou fotografe, porque não?) desde que esse estilo seja adequado ao que se pretende transmitir. Ora, não é o que se passa acima. Repito que não li o livro e não sei o papel que o humor cáustico ou não tem na história, mas basta-me a seguinte descrição de José Mário Silva: "[Riad Sattouf é] capaz de saltar de um episódio cómico [...] para outro de inaudita brutalidade (os pés dos enforcados em plena rua, escorrendo água durante uma bátega)" para dizer que algo está profundamente errado aqui. Chris Ware disse que, e faço uma paráfrase, autores como ele estavam a tentar contar histórias potentes com instrumentos próprios para contar anedotas. Observe-se acima o estilo big foot de Sattouf (não, não é linha clara) e pergunte-se: como os leitores de banda desenhada estão completamente imersos, quase desde o berço, em caricaturas é natural que já nem reparem, mas, e os outros?, aqueles que, nas palavras de José Mário Silva, não são "o habitual público consumidor de banda desenhada", aceitarão eles de bom grado este achincalhamento do sofrimento humano?

Tuesday, August 4, 2015

Captivant de Chaland Cornillon Por Paulo Pereira

Comparto três grandes interesses com Paulo Pereira: a história da arte, o xadrez, a banda desenhada. No século passado (há uma vida) Paulo Pereira era crítico de banda desenhada no jornal Expresso (por estranho que possa parecer já houve crítica da citada no dito cujo). Não comparto grande coisa com os seus gostos convencionais franco-belgas, mas o pouco que dele reli parece-me arguto e verdadeiramente crítico. Só a título de exemplo, e de homenagem, reproduzo (com muitas desculpas pelo formato algo, ou muito, estranho) um dos seus melhores textos. 

Uma das características mais irritantes da crítica tradicional de banda desenhada (praticada por bedófilos) é a completa falta de sentido crítico. Tintin é racista? Nunca! Astérix é xenófobo? Nem pensar! "O Caminho do Oriente" é propaganda fascista e revela orientalismo? Que ideia! Etc... Ora acontece que se bem que en passant Paulo Pereira  diz que a banda desenhada infantil que os bedófilos tanto presam era colonialista (e extremamente racista, acrescento eu). Para além disso Paulo Pereira é certeiro ao apelidar o "modo" que descreve como desconstrução pós-moderna. Bravo! 

Eis, portanto, um verdadeiro crítico de banda deesenhada português há quase três décadas. Não tinham havido muitos antes, não houve muitos depois...


Paulo Pereira, Expresso, A Revista, 19 de Dezembro de 1987.

PS Marcos Farrajota lembra-me que Sara Figueiredo Costa escreve no Expresso. É bem lembrado e penitencio-me por não fazer a ressalva, mas a crítica de banda desenhada é tão esporádica no dito jornal que, espero, a Sara me perdoará o esquecimento. Aliás, o meu comentário não quis dizer "há quem escreva, mas sem qualidade". O meu comentário quis mesmo dizer "ninguém escreve porque a política editorial não está p'rái virada".