Saturday, March 7, 2015

João Bénard da Costa - O Crítico - Coda

Contei-lhes - tão mal - dez minutos (se tanto) de um filme [The Searchers, John Ford et al, 1956] com duas horas. Se vos quisesse contar bem, nem um livro me teria chegado. Deixei de fora quase tudo e pouco disse do silêncio do resto. Quem é que disse que o cinema era questão de argumentos e quando se sabe a "história" se sabe o filme?
João Bénard da Costa, "A Casa dos Edwards", Crónicas: Imagens Proféticas e Outras, 3º Vol., Documenta, 2014, 124, 125.
Em "Une certaine tendence du cinéma français" [uma certa tendência do cinema francês] (Cahiers du Cinema # 31, Janeiro de 1954) François Truffaut rebateu a ideia, compreensível em tempos de incenso aos grandes literatos, enterrados no panteão e com direito a baptizar praças e avenidas, de que o "grande cinema" seria o que adaptasse os "grandes livros". Estava-se, claro está, a um passo da teoria dos autores, explicada pelo próprio Truffaut um ano depois (Cahiers du Cinéma # 44, Fevereiro de 1955) em "Ali Baba et la "politique des auteurs"" [Ali Baba e a política dos autores].

João Bénard da Costa perfilhava estas teorias, como se comprova pela citação em epígrafe. Não vou aqui discutir da validade, ou falta dela, de uma teoria que fez recentemente 60 anos. Questiono apenas o fetichismo da "visão artística". Será que basta aos Jacques Becker deste mundo demonstrarem coerência de filme para filme e mestria técnica para criarem obras-primas? Não creio, mas, como disse, é uma discussão para outra altura...

O que me interessa, de momento, é breve e simples. Resume-se à utilização que João Bénard da Costa faz da palavra "história" no excerto acima. Para adoptar um tom técnico vejamos o que escreveu Mieke Bal Narratologie [narratologia] (H&S, 1983, 4; tradução minha):
O conjunto dos acontecimentos na sua ordem cronológica, na sua localização, na sua relação com os actores que os causam ou que os sofrem, constitui a história.  
Os narratólogos (Todorov, Genette, bien sûr, C. Bremond - diz-nos o Dicionário de Narratologia de Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes, Almedina, 2000, 195) distinguem história de expressão, história do discurso ou narrativa que a veícula - récit. A história será, assim, um espaço-tempo habitado e coerente sugerido na obra (liga-se a conceitos como: diégese, fábula, etc...). A verdade é que quem conta um conto evoca um mundo passado, fictício ou não (foi assim...), e acrescenta um ponto (fá-lo à sua maneira).

"A Casa dos Edwards" descreve a surdina Tchekoviana (a qual citei no post anterior) que se desprende das imagens (e de um som ou outro). Mas as imagens são narrativas, ou não tivessem elas passado séculos a narrar as histórias de um livro: A Bíblia. Tanto estão do lado da história como da expressão dela (tal e qual como as palavras). No início de The Searchers as imagens revelam o que as palavras escondem? John Ford investiu nelas um suplemento de sentido que não plasmou (por pudor? João Bénard da Costa apostou que sim) no guião? Que importa? Não descrevem elas sequências de acções, relações entre as personagens (e de que maneira!, que direcção de actores!), o contexto espacio-temporal em que tudo se passa(ou)? (Neste último ponto faz-me alguma "espécie" como é que o rancho dos Edwards e o rancho dos Jorgensen se situam em pleno deserto: o mitómano Ford sempre preferiu sacrificar a verosimilhança à lenda - if the legend becomes fact...) Bem sei que o argumento é escrito e nele reina a palavra. Também sei que nós nunca teremos um verdadeiro acesso à história porque o produto final é já a história "transformada" pela narração (analepses e prolepses ou, mais modestamente, apenas com elipses: em The Searchers há uma de sete anos que é outro daqueles pormenores do filme que "faz espécie").

Resumindo, e correndo o risco de me repetir, o que quero dizer é só isto: tal como Derrida nos ensinou, as dicotomias são sempre falsas. Não me parece que devamos encarar a relação amorosa entre  Ethan (John Wayne) e Martha (Dorothy Jordan), cunhado e cunhada, como fazendo não parte da história, que é o que quis João Bénard da Costa, mas da expressão. Bem sei que há quem negue às imagens a sua capacidade narrativa e que para muita gente contar = literatura. Estamos outra vez metidos na negação Lessinguiana do ut pictura poesis de Horácio. Por mim, francamente, fico-me com o genial poeta latino.

Por outro lado, estas coisas nunca são lineares. Uma inflexão da voz ("Será de mim, será de tantos, estará lá, ou lá não estará, que Martha diz "Ethan" com comoção maior do que a de esperar por um cunhado [...]?", 122) será história ou narrativa (estará lá ou lá não estará?)?


John Ford (r) e Winton C. Hoch (f), et al, The Searchers, 1956. A personagem de John Wayne entra, literalmente, na história in media res. Esteve ausente do seio da família Edwards durante o tempo das duas guerras em que participou: a Secessão Norte-Americana (1861 - 1865) e a Segunda Intervenção Francesa no México (1864 - 1867). Também não sabemos nada do que se passou antes disso. Na imagem acima os dois homens preparam-se para partir em perseguição de um grupo de comanches. Percebe-se o desconforto de Samuel (Ward Bond) ao sentir-se a mais (três é multidão) perante tal demonstração de afecto (para já não falar do que ele sabe e nós desconhecemos). Como a iliteracia visual é tão grave ou mais do que a propriamente dita - as pessoas nem se dão conta de que ela existe enquanto que a outra é gritante - o affair entre Ethan e Martha, rezam as crónicas, passou despercebido aos espectadores da altura (ou devo dizer, de qualquer altura?).

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