Tuesday, March 10, 2015

Ainda a Colecção de Romances Gráficos do Público

Os fans que lêem livros de banda desenhada não querem realismo e os leitores de literatura não esperam encontrá-lo na banda desenhada.
Harvey Pekar, "In This Interview: Stories About Honesty, Money, and Misogyny" [nesta entrevista: histórias sobre honestidade, dinheiro, e misoginia], entrevista a Gary Groth, The Comics Journal # 97, Abril de 1985, 47 (tradução minha).
Parece que  estou em maré de padrinhos: depois de João Bénard da Costa eis que as circunstâncias (cf. comentários de José de Freitas ao post "Colecção de Romances Gráficos do Público") me levaram a outra influência, talvez não tão importante, mas suficiente para me fazer ver a situação deplorável do campo da banda desenhada (Bourdieu).

Estava-se no já longínquo ano de 1985 (há trinta anos, no less!) e Harvey Pekar já diagnosticava o problema perfeitamente. Se substituirmos a palavra "realismo" por algo mais abrangente chegamos ao seguinte: os leitores assíduos só consomem banda desenhada infanto-juvenil e light, enquanto que leitores mais sofisticados fogem da banda desenhada a sete pés porque têm uma ideia estereotipada do que esta seja. A banda desenhada de qualidade fica, assim, em terra de ninguém. O fenómeno do romance gráfico (nome incluído; um dia destes conto a história...) não passou de uma tentativa para contrariar esse estado de coisas evitando misturar tudo no mesmo local (a chamada loja especializada de banda desenhada). Isto porque, claro, que pessoa no seu perfeito juízo entra sequer num local cheio de bonecada ridícula? A ideia foi criar uma secção nas livrarias generalistas... Se Maomé não vai à montanha...

Depois do preâmbulo chegamos àquela que é, segundo parece, a minha frase polémica: "se o peso comercial é critério tenho razão em dizer que foi uma ocasião perdida porque TODAS as ocasiões vão ser ocasiões perdidas."

Perdoe-se-me o escurso, mas veja-se a minha lista de doze filmes abaixo:

Greed - Erich von Stroheim
Young Mister Lincoln - John Ford
The Man Who Shot Liberty Valance - John Ford
Le Mépris - Jean-Luc Godard
L'Atalante - Jean Vigo
Sansho Dayu (O Intendente Sansho) - Kenji Mizoguchi
Saikaku Ichidai Onna (Oharu - A Vida de Uma Cortesã) - Kenji Mizoguchi
Tokyo Monogatari (Viagem a Tóquio) - Yasujiro Ozu
Banshun (Primavera Tardia) - Yasujiro Ozu
Roma Città Aperta - Roberto Rossellini
El - Luis Buñuel
Un condamné à mort s'est échappé - Robert Bresson

(E deixo de fora muitos outros como Ladri di biciclette de Vittorio de Sica ou Viridiana de Buñuel ou Rashomon e Ikiru de Kurosawa ou La règle du jeu de Renoir ou The Searchers, naturalmente.)

Poderia fazer listas semelhantes a propósito de uma exposição (Rembrandt, Chardin, Picasso) ou de uma colecção de CDs (Bach, Mozart, Beethoven) ou de grandes livros (Cervantes, Tchekov, Paul Celan)... Não é a última merda da merda dos super-heróis, mas algo na lista acima carece de peso comercial? Porque motivo é que a banda desenhada é diferente então?

A resposta é simples: por variadas razões o campo da banda desenhada é delimitado por uma subcultura que produz um determinado tipo de fan(ático) (eu que o diga que sou atacado há décadas pelos membros do clube) e, o que é pior, também produz um determinado tipo de editor e um determinado tipo de crítico (a este propósito Harvey Pekar, de novo, e, de novo, com tradução minha: "Comics and Genre Literature" [a banda desenhada e a literatura formulaica], The Comics Journal # 130, Julho de 1989, 127, 128):
Ultimamente têm aparecido alguns críticos de banda desenhada com formação superior [...]. Infelizmente, a maioria deles gosta da mesma banda desenhada idiota que os fans vulgares adoram - por exemplo, levam a sério o trabalho de Frank Miller.
Qualquer critério de qualidade que tenha em conta este tipo de peso comercial não pode ser tomado a sério. Qualquer critério de qualidade que inclua Eisner e Jodorowsky também não.

5 comments:


  1. "...The Comics Journal, which is crippled by a bias for black-and-white independent publications by people of spurious talent. Many praised publications look like “outsider art” — art by people who are outsiders to art on any formal level (i.e. people without the slightest idea of composition, let alone plot, even if only to deconstruct that idea). Admittedly, there are such comics that deserve praise — including the work of Dave Sim, Robert Crumb, Seth, and Adrian Tomine — but The Comics Journal has attacked Sim (for “misogyny” — i.e. for not being politically correct — and, ironically, for championing independent publishers despite the fact that many go bankrupt) and generally disdains Tomine (because his understated stories realistically feature people in their teens and twenties). Meanwhile, Love and Rockets is championed, despite anyone providing a reason why such impromptu, ranting black-and-white narratives (not to mention the dangerous overtones) should be praised over the impromptu, ranting color super-hero narratives that dominate American comics. Indeed, most of the creators featured in The Comics Journal are unreadably bad. But of course, its minuscule target audience of middle-aged underground comics aficionados and thirty-something comics-lovers with a guilt complex toward super-heroes overlook with pride the mainstream publishers and anything featuring super-heroes, despite that so many of the best American comic book stories have been told in that genre (if only because the best American comic book creators do tend to do some work in the genre that almost utterly dominates the market), all the while also overlooking, through a haze of faux-literary values and disdain for commercialism, the typos — not to mention commercial advertisements — in The Comics Journal itself..."

    Julian Darius, Sequart

    http://sequart.org/magazine/6418/the-state-of-american-comics-address-2002/

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  2. Os super-heróis são popaganda americana de extrema direita pura e dura. Para já não falar no ridículo do conceito, nas histórias formulaicas, nas personagens unidimensionais, no maniqueísmo, etc... Mas, francamente, se há coisa que não me apetece fazer é discutir banda desenhada infantil.

    Quanto ao resto, até posso concordar, mas o autor só diz generalidades. Quem são os autores de que fala? Mistério... Também não posso concordar com os elogios ao medíocre Dave Sim. Quanto aos outros apreciar apreciar, só Seth, mas comentei neste blogue (e a ele próprio) a desilusão que sinto por uma carreira que podia ter sido e não foi...

    Francamente, já nem me lembro de quando foi a última vez que comprei um livro da Fantagraphics.

    Tinhamos gostos e opiniões completamente diferentes, mas tenho muitas saudades do Kim Thompson; é só o que tenho para dizer antes de começar p'ráqui a choramingar...

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  3. Para mim, os super-heróis são um género, como a fantasia ou a ficção-científica ou o policial. Há quem goste, e há quem não goste (eu gosto). A ficção-científica também pode ser boa ou má, há livros que são puro entretenimento e escapismo (nothing wrong with that), outros que podem ser lidos de outro modo. Há livros que contêm subtextos importantes e interessantes de comentário ou crítica ou exposição social, política, etc... como o Dune, Starship Troopers, Stand on Zanzibar, etc... E mesmo na categoria dos livros dessa estirpe, há os bons e os maus, porque em última instância, têm de ser legíveis e proporcionar algum "entretenimento" quando são lidos, como exemplos do género. Com os super-heróis é igual. Há coisas boas que são puramente diversão e entretenimento, e deixamos de ler ou achar piada quando atingimos uma certa idade, há as coisas más (muitas), e há o bom, que é simultaneamente entretenimento e algo mais. E se há muitos autores de super-heróis que são assumidamente de direita ou extrema-direita, há muitos comics de super-heróis que não são (Planetary, Miracleman, algumas fases de Authority, etc...).

    Confesso também um certo preconceito meu contra algum tipo de BD: a que é banda-mal-desenhada, e muita da que faz parte do subgénero do slice of life, porque iria achá-la igualmente enfadonha e sem grande interesse se fosse em filme, série de TV, romance ou o que fosse. P.ex. American Splendor, de que nunca consegui gostar (embora haja exemplos deste género de que gosto muito, como o Combat Ordinaire). Mas aqui já estamos muito na discussão das preferências pessoais, Eu gosto de terror e policial, por exemplo, por isso se calhar olharei para livros nestes géneros com mais benevolência, etc...

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  4. Como disse, não vou discutir banda desenhada infanto-juvenil (ou mesmo YA). Quanto ao resto: são coisas que não leio...

    No American Splendor não pego há muito tempo. A minha lista no primeiro post deste blogue acho que regista o número quatro da série, mas teria que reler tudo. Sei que os últimos livros de Harvey Pekar (outro a saltar no vagão do romance gráfico) eram péssimos.

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  5. Aceito. Eram meros exemplos, temos direito às nossas opiniões, e acho que entendo a sua crítica.

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